No fim de 2021, ainda em meio ao morticínio da pandemia de covid-19, mas já se aproximando, pela força das vacinas, do fim do túnel, o mundo optou por um “compromisso geracional”, nas palavras do diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, “de não voltar ao velho ciclo de pânico e negligência”. As 194 nações da ONU concordaram em preparar, até maio de 2024, um ambicioso plano global para enfrentar a ameaça conhecida como “Doença X” – o codinome para algum patógeno desconhecido, possivelmente mais contagioso, mortífero e resiliente que o coronavírus. Mas, após nove rodadas de negociações, a conclusão está se provando difícil.
Todos sabem o que é preciso fazer: prevenir (o surgimento de novos patógenos); detectar (caso algum surja); conter (a sua propagação); e tratar (as infecções). Esse é o roteiro desde que os seres humanos são acometidos por doenças contagiosas. Mas a covid revelou fatores de risco maiores do que em toda a história: uma humanidade mais adensada, conectada e móvel, que pressiona o meio ambiente.
Há cerca de 1,6 milhão de vírus no planeta em mamíferos e pássaros, e todos os anos surgem novos. Muito dessa “matéria escura viral” escapa ao nosso controle, mas podemos reduzir os riscos aliviando pressões sobre biomas e o tráfico de animais. Outra questão é o controle dos laboratórios. A detecção exige um sistema de vigilância viral. A contenção e o tratamento serão mais rápidos se o mundo for capaz de concertar protocolos de isolamento, produzir arquivos de vacinas prototípicas e estiver em condições de mobilizar agilmente testes clínicos, marcadores biológicos indicando respostas imunológicas às vacinas e fábricas de biomanufatura.
A dificuldade não é tanto o que fazer, mas como. Neste momento, há três zonas de controvérsia: o grau de ingerência que os países cederiam à OMS; os custos para os contribuintes; e o compartilhamento de informações entre Estados e entre empresas.
Não são problemas triviais, e se ainda não foram solucionados não é por mera má vontade. Por exemplo, interferir nos direitos de patentes e perspectivas de lucro das farmacêuticas pode reduzir o incentivo para o desenvolvimento de vacinas. Mas não interferir pode prejudicar a escala e a equidade da distribuição. Patógenos infecciosos não conhecem fronteiras nem distinguem classes e, se uma parte do mundo estiver desprotegida, o mundo estará.
São desafios que exigem cálculos apurados de custo-benefício e negociações intensas, mas superá-los é factível. O risco é não superá-los em tempo, não por má vontade, egoísmo ou ganância, mas por apatia, distração ou complacência.
A ameaça das pandemias é diversa de outros riscos existenciais, como mudanças climáticas, proliferação nuclear ou inteligência artificial. Estes riscos estão condicionados a tecnologias em expansão, que exercem uma pressão constante e crescente. Podemos momentaneamente nos alienar desta pressão, mas há sempre uma catástrofe ambiental, um conflito armado ou uma invenção disruptiva para nos despertar.
Pandemias se comportam como o tubarão do famoso filme: surgem do nada, causam caos e carnificina e desaparecem nas profundezas. O risco é repetir o “velho ciclo de pânico e negligência” de que fala Adhanom. “Porque somos tão bons em seguir adiante para as próximas coisas como humanos – isso é parte de nossa estratégia de sobrevivência –, há quase essa amnésia coletiva”, advertiu Ashley Bloomfield, um ex-secretário de Saúde neozelandês.
É incerto o que virá, quando, onde ou como, mas é certo que virá uma nova pandemia. Evitá-la não está em nosso poder, ao menos não completamente, mas está em nosso poder nos preparar melhor para monitorá-la, antecipar modelos vacinais e nos planejar para produzi-los e distribuí-los rapidamente. Porém o maior desafio a essa preparação não é técnico ou financeiro, mas psicossocial: a nossa tendência a esquecer que há um desafio. Quanto mais nos afastamos da pandemia de covid, maior é essa tendência. O problema é que, quanto mais nos afastamos da covid, mais nos aproximamos da “Doença X”.