Em setembro do ano passado, durante a cerimônia de posse da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, parecia haver uma paralaxe cognitiva entre as autoridades presentes. De um lado, a presidente do STF alertava para “tempos particularmente difíceis da vida institucional do País, tempos verdadeiramente perturbadores”. De outro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, dizia não ver nada de anormal. “É gratificante saber que tivemos um 7 de Setembro pacífico e ordeiro, sem violência”, disse Aras no plenário da Corte, referindo-se às celebrações do Bicentenário da Independência, que, sequestradas pelo então presidente Jair Bolsonaro para sua campanha eleitoral, foram tão tensas que exigiram medidas extraordinárias de segurança. As imagens do mesmo plenário depredado no domingo passado não deixam dúvida de quem tinha razão.
Não só com a ação desenfreada nas ruas se construiu o espetáculo de destruição, mas com a omissão nos gabinetes do poder. Como mostrou o Estadão, houve uma atuação persistente do procurador-geral da República para dificultar investigações das mobilizações golpistas por parte do Ministério Público. Aras extinguiu grupos de investigação e devolveu a procuradores pedidos de informações ao Exército e à polícia sobre acampamentos em quartéis. Só depois do leite derramado, na segunda-feira, ele criou uma “Comissão de Defesa da Democracia”.
Em 2019, ao indicá-lo para chefiar a Procuradoria-Geral da República (PGR), Bolsonaro disse que Aras seria a “rainha” no tabuleiro de xadrez de seu governo, ou seja, a peça mais poderosa na defesa do “rei” e no ataque aos seus desafetos. De fato, o procurador-geral da República ignorou, sob argumentos supostamente técnicos, uma série de indícios de crimes envolvendo Bolsonaro e seus acólitos.
Aras não viu problema, por exemplo, no “orçamento secreto”, nos escândalos de corrupção nos Ministérios da Saúde e da Educação, nas confusões e sabotagens de medidas sanitárias por parte de Bolsonaro durante a pandemia e nos ataques à Justiça Eleitoral. Ante os indícios de rachadinhas de Flávio Bolsonaro, Aras apoiou o filho do “rei” em suas pretensões de foro privilegiado. Diversas vezes pediu o arquivamento de inquéritos, como os que versavam sobre a organização e financiamento dos atos antidemocráticos. Tão sistemáticas foram suas omissões, que diversas vezes foram revertidas pelo próprio STF.
A trajetória de Aras é tanto mais chocante por contrastar com o vício oposto que imperou na PGR nos tempos de Rodrigo Janot: a hostilidade jacobina à política. Na oscilação entre os extremos da omissão e do abuso, o Ministério Público enfraquece sua missão constitucional de proteger a ordem jurídica e o regime democrático. Nada ilustra mais essa desproteção que o rastro de destruição deixado na Praça dos Três Poderes. Não cabe ao Ministério Público perseguir políticos, tampouco servi-los. Seu dever é servir a Constituição, defendendo, nos limites do devido processo legal, a lei e a democracia.