Países não têm amigos, têm interesses. Mas os interesses de Brasil e Argentina foram sequestrados pelas animosidades de seus chefes de Estado.
O último capítulo dessa novela de mau gosto é a visita de Javier Milei ao Brasil neste fim de semana, não enquanto chefe de Estado, mas como militante num convescote reacionário liderado pela família Bolsonaro. Isso após anunciar que não participará da Cúpula do Mercosul, na segunda-feira, por “excesso de compromissos”. Já o presidente Lula da Silva disse há alguns dias que não conversaria com Milei enquanto ele não pedisse desculpas “ao Brasil e a mim”, por ter falado “muita bobagem”.
“El Loco”, sem dúvida, diz muita bobagem. O entrevero começou já nas eleições argentinas, em 2023. Lula apoiou escancaradamente o companheiro peronista Sergio Massa. Milei o acusou de interferir nas eleições e o chamou de “comunista” e “corrupto” – o que voltou a repetir agora. Na cerimônia de posse, o convite ao antípoda de Lula, Jair Bolsonaro, ensejou um pretexto para que o presidente brasileiro se recusasse a participar.
Não se trata de ponderar, como se faz com crianças, quem começou primeiro ou quem ofendeu por último. Nesse último quesito, Milei, que replica a tática bolsonarista de trocar vitupérios por votos, até leva a melhor. Mas isso só importa às relações privadas entre ambos. As relações entre chefes de Estado estão – ou deveriam estar – em outro plano, no qual inclinações pessoais e partidárias são irrelevantes.
Não é assim, contudo, que funciona a diplomacia personalista e sectária de Milei e Lula. Com estilos diferentes e ideias antagônicas, ambos instrumentalizam os palcos internacionais para destilar seus rancores ideológicos, batalhando quixotescamente em “guerras culturais” para agitar a militância e jogar areia nos olhos do cidadão comum. Essa atitude explica por que Lula também diz muita bobagem sobre questões geopolíticas, como a guerra na Ucrânia ou as “democracias” de Cuba, Venezuela e China.
A boca suja de Milei é problema dos argentinos. Mas ele ao menos, aparentemente, não padece da megalomania de Lula, que identifica seu ego com o próprio Estado. Afinal, não há razão para que Lula condicione sua relação com os governos da Argentina ou de Israel a pedidos de desculpas por supostas ofensas que ele sofreu. Aliás, Milei enviou três cartas sugerindo a aproximação entre os governos, que foram respondidas com silêncio.
Dinheiro não tem cheiro, e a rinha de galo entre os populistas não afetará as relações comerciais entre os vizinhos – ao menos não por ora. Mas há mais em jogo. Os dois países formam a base do Mercosul e representam dois terços do território, da população e do PIB do Cone Sul, cujo destino depende da cooperação entre ambos.
Desde a época das missões até as disputas sobre a Usina de Itaipu ou a corrida nuclear, Brasil e Argentina já viveram conflitos severos. Mas eles foram solucionados pelos adultos na sala, estadistas que extraíram das crises mais confiança mútua. Hoje é o inverso: não há nenhum conflito entre os dois Estados, muito menos entre os dois povos, só entre as duas crianças no poder.