A esquerda brasileira “morreu como esquerda”, e a extrema direita é hoje a única força política real no Brasil. Esse diagnóstico, feito por um dos principais intelectuais de esquerda, o professor da USP Vladimir Safatle, tem produzido um animado debate entre seus pares. Não faltaram reflexões sobre a tese do falecimento, por si só polêmica, nem sobre as razões para a falta de norte da esquerda, os caminhos para superá-la e até embates delirantes sobre a recusa a “gerir a crise do capitalismo” – sim, houve quem sugerisse que a esquerda morreu porque se limitou a conviver com o capitalismo, como se a alternativa a isso pudesse ser muito diferente das ditaduras como a Rússia de Putin ou a Venezuela de Maduro, para citar dois tiranos que contam com a admiração embevecida da esquerda e o beneplácito do presidente Lula da Silva.
Caso se leve realmente a sério, contudo, a esquerda tem mais um rico objeto de análise para discutir seu passamento ou sua desorientação: o notável esvaziamento das manifestações convocadas em todo o Brasil no último dia 23 de março.
Foram constrangedoras as cenas produzidas nos atos convocados pela frente que abriga PT, PCdoB, PSOL, sindicatos e movimentos sociais. Entre as 22 cidades programadas para abrigar manifestações, Salvador teve a maior mobilização, reunindo modestas 1,7 mil pessoas, segundo cálculo do grupo de pesquisa da USP, especializado em medições dessa natureza. No Largo São Francisco, em São Paulo, viu-se um público estimado em até 1.300 pessoas. Houve capitais com algumas poucas centenas de pessoas, e isso no pico da manifestação. A palidez dos atos foi reafirmada pela ausência das maiores lideranças da esquerda – não compareceram a nenhuma manifestação nem o presidente Lula da Silva nem governadores, parlamentares ou ministros relevantes.
Era um fracasso anunciado desde que a frente mais extremista da esquerda arquitetou os atos como resposta à multitudinária manifestação recentemente promovida pelo bolsonarismo na Paulista. Neste caso, a derrota da esquerda não se deu somente nos números – foi também conceitual. Enquanto os bolsonaristas tinham uma agenda enxuta e bem definida – a defesa de Bolsonaro e dos golpistas –, os atos do PT e de seus satélites foram marcados pela dispersão de propósitos. Havia de tudo no receituário lulopetista, da defesa da “prisão de Bolsonaro” à “ditadura nunca mais”, em memória dos 60 anos do golpe militar; do discurso cínico “contra o genocídio na Palestina” a uma difusa “defesa da democracia” – totalmente seletiva, é claro.
Não se trata de um fracasso pontual. É de um tempo distante o protagonismo da esquerda na ocupação das ruas. Sua liderança existiu enquanto sindicatos formavam a espinha dorsal dos movimentos sociais que empurraram a pauta da democracia, a partir do fim da década de 1970, e os protestos contra Fernando Collor, nos anos 1990. Essa força se diluiu quando os sindicatos perderam musculatura pela incapacidade de atualização de suas pautas e pelo fim das benesses financeiras que eram geradas pelo imposto sindical. O PT também exibiu força enquanto se protegeu sob o manto da virtude oposicionista, um messianismo desmoralizado após os ruidosos casos de corrupção dos mandatos de Lula e Dilma Rousseff. Para completar, as Jornadas de Junho de 2013 e o “Fora, Dilma”, em 2015 e 2016, mostraram que as ruas não tinham mais dono a partir dali.
Pesaram para isso também a captura do campo progressista pela pauta identitária, agenda que hoje mais afasta do que atrai progressistas moderados, além das próprias contradições petistas: o envelhecimento do seu ideário, a incapacidade de perceber que as clivagens na sociedade não permitem mais tentar se mostrar como o único representante dos interesses nacionais e a escandalosa associação petista com ditadores. Enquanto achar que sua pauta se confunde com o petismo e planejar seus atos com base do bolsonarismo, a esquerda seguirá produzindo vexames como o que se viu no vazio de março. A ausência nas ruas é um dos sintomas da ausência de boas ideias.