A seca mais grave nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil desde 1980 é mais um clássico caso de tragédia anunciada. A inação do poder público na prevenção de seus potenciais efeitos sobre a população, seguida pela correria improvisada para mitigar a catástrofe, demonstra o quanto os governos federal e estaduais ainda ignoram os alertas de entidades de referência no estudo dos fenômenos climáticos. A ausência de planejamento prévio há muito não é admissível no País, tão sujeito como os demais aos impactos conhecidos do aquecimento do planeta.
A possível transferência emergencial de comunidades agrícolas pelo Estado do Amazonas reflete a gravidade da seca deste ano, motivada pelo El Niño e acentuada pelo desmatamento florestal. Retirar centenas de milhares de pessoas de seus locais de origem, muitas das quais com ascendentes ali assentados há décadas, nada tem de banal. Se adotado, será um plano extremo para preservar vidas, mas claramente tardio ante o impacto de uma estiagem prevista.
A seca no Norte e no Nordeste está associada primariamente ao El Niño, fenômeno natural provocado pelo aquecimento da superfície do Oceano Pacífico e em nada motivado pela atividade humana. Não há como detê-lo – apenas como prevenir e/ou remediar seus prováveis efeitos. Em 2010, foi essa a razão da mais grave seca registrada até então no Norte, com repercussões semelhantes às de agora. Os alertas sobre a ferocidade do El Niño neste ano vinham desde 2022. Em junho passado, o Escritório Nacional de Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) anunciou que seus efeitos já eram perceptíveis.
Naquele mês, um boletim de quatro instituições federais, entre as quais o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), informou sobre a elevação de 3 graus centígrados na superfície do Pacífico Equatorial e as consequências esperadas, como as chuvas intensas no Rio Grande do Sul de setembro. Já se registravam nos meses anteriores os níveis alarmantes de baixa precipitação no Norte e no Nordeste.
O quadro no Norte do País é altamente desafiador. Mais de 500 mil brasileiros estão diretamente afetados, e 60 municípios declararam situação de emergência. As vazões de 42 rios, entre os quais o Solimões e o Negro, recuaram a patamares alarmantes em uma região onde eles são sinônimos de vida, acesso a direitos elementares, trabalho, renda e transporte. Várzeas exploradas pela agricultura familiar viraram terra improdutiva, a pesca tornou-se inviável e o ar seco eleva os riscos de incêndios florestais. O linhão de transmissão das usinas no Rio Madeira, de Rondônia a São Paulo, foi desligado, assim como os geradores da Hidrelétrica de Santo Antônio (RO). Térmicas serão ativadas para evitar o colapso no fornecimento de energia na região, como anunciou o vice-presidente Geraldo Alckmin em visita no último dia 4 a Manaus.
É preciso notar que o governo federal só se fez presente na região para tratar da estiagem quando a tragédia já estava consumada, com vítimas como os moradores de uma vila de Beruri que desmoronou pela falta de vazão no Rio Purus. Alckmin apresentou um pacote para aliviar a carestia da população atingida, o envio de médicos e brigadistas e a dragagem do Solimões para garantir o escoamento de produtos da Zona Franca de Manaus. “Não faltarão recursos”, prometeu. Bom saber, mas isso é nada mais do que a obrigação.
A remoção às pressas de famílias de agricultores pelo governo do Amazonas, se levada a cabo, será o mais triste resultado da omissão diante de uma grave seca fartamente prevista. Contrasta com a intenção da diplomacia brasileira de apresentar proposta sobre o planejamento da transferência de populações sujeitas aos efeitos do aquecimento global na COP 28 de Dubai, neste fim de ano. O Brasil precisa investir em sua capacidade de antecipar tragédias naturais e climáticas e de atuar preventivamente. Os brasileiros têm direito a esse esforço e não merecem mais atrasos.