Há muito as pesquisas apontam que a segurança pública é a maior prioridade dos brasileiros e nos últimos anos a preocupação com a criminalidade só aumentou. É consequente: o Brasil detém 3% da população do planeta e concentra cerca de 14% de seus homicídios. O fracasso em garantir o direito fundamental do qual dependem todos os outros, o direito à vida, é o maior sinal da falência do Estado brasileiro. Se faltam garantias à integridade física e patrimonial dos cidadãos, não há como desfrutarem e aprimorarem plenamente a cidadania.
Paradoxalmente, a Constituição “Cidadã”, que concorre para o título de a mais prolixa do mundo, foi notavelmente lacônica ao tratar da segurança pública, reservando 1 – apenas 1 – de seus 250 artigos ao tema. Em outras áreas sociais – como saúde, assistência social ou educação – a lógica da universalização embasou a regulação e prestação de serviços, a partilha de responsabilidades e as diretrizes para uma atuação cooperativa entre os entes do Estado. O expoente mais vistoso desta lógica foi a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Já na segurança não houve inovações. Desde a primeira Constituição, em 1824, até a sétima, nunca houve atribuição de competências constitucionais à União na área de segurança. O Brasil nunca teve um sistema ou uma política nacional de segurança pública.
Essa acefalia é tanto mais gritante e mortífera numa época em que a hidra do crime organizado se nacionaliza e se internacionaliza aceleradamente, infiltrando-se e capilarizando-se com crescente sofisticação no mercado e no Estado, e dominando territórios onde instauram “Estados paralelos” (como nas favelas) ou “ecossistemas do crime” (como na Amazônia).
“No Brasil, construiu-se uma narrativa eficaz de que isso é um problema dos Estados, porque vemos muito a segurança pública como sinônimo de polícia”, disse em entrevista ao Estado a pesquisadora de segurança da FGV Joana Monteiro. “O que tem de mudar é uma pressão pública para dizer que isso não é só um problema dos Estados. Quem deve liderar, certamente, a iniciativa de desenhar a segurança pública do Brasil é o governo federal.”
Entre as prioridades apontadas por Monteiro para a União estão uma arquitetura de distribuição de responsabilidades e sua estrutura de governança; a estruturação de um sistema de inteligência; a unificação da compilação e compartilhamento de dados; e investimentos em capacidade investigativa. Este último aspecto é especialmente relevante para reverter o baixo índice de elucidação de delitos e para combater o crime organizado, em particular para desbaratar os circuitos financeiros que oxigenam o monstro.
Em 2018, o governo Temer criou o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), justamente com o objetivo de materializar essas prioridades, articulando e integrando as ações dos órgãos de segurança do País, desde a prevenção à repressão, dos sistemas de inteligência aos sistemas prisionais.
Mas o Susp nunca saiu do papel. O presidente Jair Bolsonaro jacta-se de ser um campeão do combate ao crime, mas sua única política pública consistente foi a rigor uma antipolítica – armar cidadãos para que façam justiça com as próprias mãos – e seu maior resultado foi contraproducente – armar os bandidos. O presidente Lula padece da miopia ideológica da esquerda, e trata a criminalidade como mera externalidade negativa da desigualdade social. Segundo essa lógica, basta o Estado cuidar da educação e da saúde e a violência se resolverá num passe de mágica. Não surpreende que os planos fabricados por seu Ministério da Justiça sejam meras cartas de intenções genéricas. Tampouco surpreende que a segurança pública seja o setor mais mal avaliado de sua gestão. O arcabouço do Susp está à mão. Mas é pouco provável que Lula invista numa solução engendrada pelo “golpista” Michel Temer.
Eis o estado da questão: o crime organizado se organiza cada dia mais, enquanto a União segue complacentemente desorganizada. A população range os dentes sentada sobre um barril de pólvora, mas seu Estado dorme e ronca deitado em berço esplêndido.