Uma das motivações mais poderosas para o surgimento das democracias liberais foi a revolta contra a vigilância intrusiva dos monarcas absolutistas. Isso não significa que toda vigilância seja ruim. Ao contrário. Se o fundamento do Estado de Direito é a igualdade de todos perante a lei, mecanismos para vigiar a observância da lei por todos são indispensáveis.
Qualquer discussão sobre vigilância deve reconhecer uma ambivalência congênita entre “vigiar um indivíduo ou indivíduos para mantê-los seguros, mas também vigiá-los para garantir que observem um certo padrão de comportamento”, como disse o constitucionalista Lawrence Cappello em seu livro sobre o direito à privacidade, None of Your Damn Business (Não é da sua conta, em tradução livre). “Conceitualmente, a vigilância emancipa e também constrange. É usada tanto para proteger quanto para controlar.”
Toda geração precisa equilibrar, por meio de suas instituições, segurança e liberdade, vigilância e privacidade. Se alguém quiser um vislumbre do que acontece quando esse equilíbrio é rompido, basta olhar para a China. A pretexto de proteger os cidadãos, o Partido Comunista está empregando a tecnologia digital para implementar o maior aparato de controle social e manipulação da opinião pública da história humana. Há dezenas (provavelmente centenas) de milhões de câmeras com reconhecimento facial pelo país. A internet é cercada por uma muralha digital, dentro da qual redes sociais, e-mails e conversas no WeChat (o WhatsApp chinês) são monitorados. Desde a pandemia, os cidadãos foram obrigados a baixar um aplicativo que rastreia seus movimentos.
As delegacias monitoram milhões de indivíduos com ficha na polícia, mas também suspeitos de ameaçar a “segurança do Estado”, incluindo ativistas, fiéis religiosos e pessoas que peticionam contra o governo. Informantes são recrutados para denunciar colegas e vizinhos insatisfeitos com as autoridades. Está em curso a implementação de um “sistema de crédito social” que ranqueia cidadãos de acordo com seus comportamentos “antissociais”. Quem pisa fora da linha pode esperar a qualquer momento uma visita da polícia.
Como constatou uma reportagem do New York Times, publicada no Estadão, sobre a “repressão preventiva” chinesa: “O objetivo não é mais apenas lidar com ameaças específicas, como vírus ou dissidentes. É incorporar o Partido tão profundamente na vida diária que nenhum problema, por mais irrelevante ou apolítico que pareça, possa sequer surgir”.
Para os que veem nisso uma distopia, cabe lembrar que o presidente Lula da Silva disse em 2021 que a China só conseguiu combater o coronavírus rapidamente na pandemia “porque tem um partido político forte e um governo forte, porque o governo tem controle e poder de comando”. “O Brasil não tem isso, nem outros países”, lamentou. A presidente de seu partido, Gleisi Hoffmann, celebrou, em Pequim, o que chamou de “democracia efetiva”: “O que eu vejo aqui, inclusive na organização do partido e da sociedade, é uma democracia e uma participação nos estratos mais baixos da sociedade aos mais altos no desenvolvimento do país”.
A Polícia Federal apura indícios de que o ex-presidente Jair Bolsonaro teria aparelhado a Agência Brasileira de Inteligência para rastrear celulares de políticos, magistrados e jornalistas. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a contratação de serviços de monitoramento das redes pelo governo. Agora, a própria Corte abriu licitação para contratar serviços de rastreamento, inclusive com georreferenciamento de usuários, para monitorar “práticas que afetam a confiança das pessoas no Supremo” e “distorcem ou alteram o significado das decisões”. Dada a ficha corrida de abusos que a Corte tem praticado sob a capa de inquéritos secretos para apurar fake news e milícias digitais, é uma iniciativa no mínimo inquietante.
Democracias liberais precisam de autoridades que vigiem o cumprimento de suas regras. Mas o preço da liberdade é a eterna vigilância sobre os vigilantes.