A fragilidade dos registros de terras no Brasil alimenta há muito tempo as disputas fundiárias pelo interior. Mas há casos, como os relatados em reportagem do Estado, em que o roubo de terrenos por meio de documentos forjados ocorre não em algum rincão perdido, onde prevalece a insegurança jurídica, mas em áreas nobres de São Paulo, onde se supõe que os registros de propriedade estejam a salvo da malandragem dos grileiros. Neste ponto, advertimos o leitor de que a sem-cerimônia e a desenvoltura com que age a quadrilha retratada pelo repórter Alexandre Hisayasu não autorizam ninguém a concluir que qualquer um, a qualquer momento, munido de um pedaço de papel, pode invadir terrenos, cercá-los e reivindicar sua propriedade. Isso continua sendo crime – embora, nesse caso, os criminosos, na ativa desde 2007, continuem soltos e a ganhar dinheiro. O protagonista é José Gonzaga Moreira, vulgo “Zezinho do Ouro”, que, aos 71 anos, chefia um grupo apelidado de “Turma do Zé do Ouro”, especializado em dizer-se dono de terrenos e tomá-los na marra. Zezinho do Ouro e seu bando aplicam o golpe usando documentos antigos para comprovar a posse da terra. É o que se chama de grilagem, delito cujo nome deriva da prática de envelhecer um falso título de propriedade numa gaveta com grilos. Hoje em dia, é claro, os grileiros não fazem mais assim – no interior do País, eles contam com o conluio de autoridades e o tráfico de influência para oficializar o roubo de terras. Nesse aspecto, o grupo de Zezinho do Ouro ainda age à moda antiga: tendo em mãos uma certidão paroquial de 30 de maio de 1856 e uma escritura de cessão de direitos hereditários de 2 de julho de 1956, ele invade terrenos para consumar a posse. A operação é rápida. Ele cerca a área invadida e mobiliza seus homens para fazer a segurança do terreno e evitar novas invasões. Em um dos casos, colocou uma placa em que avisa que “esbulho possessório é crime”. E o atrevimento foi ainda mais longe: a quadrilha chegou a entrar na Justiça para fazer valer a alegada titularidade do terreno. Enquanto isso, aplica golpes no mercado imobiliário, vendendo o que não lhe pertence. Quando os verdadeiros donos se dão conta, o fato já está consumado, e então começa a luta judicial para provar o óbvio – que os supostos proprietários não passam de reles ladrões de terra. No episódio mais recente, que está nos tribunais desde julho de 2014, o bando alega ser dono de um certo “Sítio Barreiro”, que ficaria em uma área com cerca de 11 milhões de metros quadrados em Santana de Parnaíba, por onde se espalham condomínios de casas de alto padrão. A Justiça determinou que a situação da área só poderá ser modificada quando houver uma decisão final. O problema é o sem-número de instâncias pelas quais o processo tem de passar, o que certamente atrasará a sentença, elevando o prejuízo dos proprietários. Até agora, todos os tribunais que avaliaram a questão concluíram que os documentos apresentados por Zezinho do Ouro não têm valor, enquanto os papéis dos verdadeiros proprietários são reconhecidos em cartório. O desembargador Virgílio de Oliveira Júnior, do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirmou que não se pode nem mesmo admitir Zezinho do Ouro “como parte de boa-fé” – após longa carreira como informante a serviço da polícia e do regime militar, ele se especializou nos golpes mais diversos, conforme indicam vários processos a que responde por formação de quadrilha, estelionato e exploração de jogos de azar. Parece provável que o resultado dos processos será favorável às vítimas. No entanto, as coisas não são tão simples. Um “dissidente” do bando de Zezinho do Ouro, Francisco Fagundes Lima, de 93 anos, vendeu o que diz ser sua “parte” nas terras griladas para o empresário Lourival Malara, dono de uma incorporadora imobiliária. Este se considera proprietário de todo o terreno, contesta as decisões judiciais que negam validade à documentação apresentada e está processando Zezinho do Ouro. É um roteiro digno de Kafka.