A menos de duas semanas do segundo turno, a sociedade assiste diariamente à violação de todos os limites do uso da máquina pública em nome da reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) acaba de aprovar o uso de recursos futuros do fundo para o pagamento de até 80% da parcela de financiamentos imobiliários. A proposta funcionará como um empréstimo consignado, lastreado nos depósitos que as empresas ainda farão nas contas individuais de cada empregado. A medida valerá para famílias com renda mensal de até R$ 2.400, garantindo que elas possam adquirir imóveis mais caros do que seus rendimentos efetivamente permitiriam.
A esdrúxula sugestão do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) foi aprovada por unanimidade pelo conselho, composto por seis integrantes do governo, três representantes dos trabalhadores e três dos empregadores. É impressionante que ninguém tenha ousado fazer qualquer ponderação sobre os riscos da proposta – nem mesmo sobre o quanto as prestações podem aumentar caso o empregado seja demitido e sobre o potencial que isso tem para estrangular sua já limitada capacidade financeira.
Que não haja engano: essa súbita sensibilidade com os mais pobres não tem nada de genuína. Do contrário, o governo não teria paralisado, por mais de três anos, a contratação de novas unidades habitacionais subsidiadas com recursos do Orçamento no âmbito do Casa Verde e Amarela, não por acaso direcionadas à mesma parcela da população. Para 2023, o Orçamento enviado pelo Executivo ao Congresso prevê apenas R$ 82,3 milhões para o programa, um corte de 95% em relação ao valor reservado para este ano, em que apenas 2.450 unidades foram contratadas.
Longe de resolver o crônico déficit habitacional do País, que atingia 5,8 milhões de famílias em 2019, a aprovação do uso do FGTS futuro em financiamentos imobiliários é uma medida que atende a um pleito de construtoras interessadas em desovar um elevado estoque de imóveis. Quanto ao risco de inadimplência, ora, é para isso que servem os bancos como a Caixa. Afinal, quem mais aceitaria entrar de cabeça em um financiamento que tem tudo para elevar ainda mais os níveis recordes de endividamento que vêm sendo registrados no País?
Prova disso é a atuação “patriótica” da Caixa na modalidade de crédito consignado do Auxílio Brasil. Em três dias de operações, um banco que é conhecido por um atendimento burocrático já havia liberado nada menos que R$ 1,8 bilhão a 700 mil beneficiários, mas a única instituição que viu o caráter eleitoreiro dessas ações parece ter sido o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MP/TCU). Coube ao subprocurador-geral Lucas Furtado pedir à Corte de ministros que suspendesse a oferta em caráter cautelar. “Não é desarrazoado supor que o verdadeiro propósito dessas ações, ou pelo menos da forma como elas vêm sendo conduzidas, seja o de beneficiar eleitoralmente o atual presidente da República e candidato à reeleição”, disse.
Se o Auxílio Brasil já era o pior, mais caro e mais ineficiente programa social da história do País, a ideia do empréstimo consignado para seus beneficiários é uma completa incoerência desde sua concepção. Como justificar a alavancagem financeira de pessoas sem condições de gerar o próprio rendimento e ignorar o fato de que estar em um programa de transferência de renda é justamente o que garante a elas o mínimo para sobreviver? Essa, no entanto, é apenas uma das várias medidas populistas e irresponsáveis anunciadas pelo governo às vésperas da eleição – e nada indica que será a última.
É preciso reconhecer o talento de Jair Bolsonaro para normalizar o absurdo. Nunca se viu um uso tão escancarado da máquina pública para eleger um candidato. Não se sabe se esse conjunto de políticas terá potencial para mudar o cenário da disputa presidencial mais acirrada da história do País, mas não há dúvida de que o atual governo atingiu o estado da arte no que diz respeito à exploração política da pobreza.