O sol deve ser a principal fonte de energia na expansão do sistema elétrico, segundo indicam os projetos cadastrados para o leilão do setor, marcado para maio. Nesse leilão o governo deverá selecionar os empreendimentos fornecedores de eletricidade para todas as distribuidoras. Geração fotovoltaica aparece em cerca de dois terços – 67% – dos 1.894 projetos catalogados na Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Essa fonte deverá garantir 70% dos 72.250 mil megawatts (MW) adicionais estimados para o programa. Falta saber como essa eletricidade chegará aos consumidores, sejam pessoas físicas ou jurídicas. Há um descompasso entre projetos de geração e projetos de transmissão, um detalhe comprometedor para todo o programa setorial.
Planejamento vem perdendo espaço em Brasília, há vários anos, e praticamente sumiu da agenda federal em 2019, quando se instalou a atual administração. O descompasso entre geração e transmissão tem sido observado há alguns anos. Foi evidenciado, por exemplo, depois de investimentos importantes em produção de energia eólica no Nordeste.
Em 2016 a eletricidade produzida com a força do vento correspondia a cerca de 4% do consumo nacional e a 25%, aproximadamente, do nordestino, segundo cálculo do Operador Nacional do Sistema Elétrico. Mas a capacidade produtiva era subutilizada. No começo daquele ano, 13 usinas estavam paradas por falta de linhas de transmissão.
Três anos antes, 26 empreendimentos estavam prontos para produzir energia de fonte eólica, na Bahia, no Ceará e no Rio Grande do Norte, mas os projetos de linhas de transmissão estavam atrasados. A produção daquele conjunto de usinas seria suficiente para abastecer 3,3 milhões de pessoas.
Curiosamente, a parte mais complexa do trabalho havia sido realizada. Enormes equipamentos para converter vento em eletricidade haviam sido fabricados, transportados por milhares de quilômetros e instalados com sucesso. Mas faltou um componente essencial do sistema: torres e linhas para levar a energia aos consumidores.
Os brasileiros convivem há muito tempo com esse arremedo de planejamento, sempre com falta de um detalhe essencial. É parte do dia a dia. Completado o serviço de pavimentação, a companhia de gás ou de água arrebenta o asfalto, no dia seguinte, para instalar ou arrumar seu encanamento.
Planejamento ruim, tanto quanto falta de planejamento, pode causar incômodos injustificáveis, paralisação de atividades, prejuízos enormes e até perda de vidas. No caso da energia, os danos são evidentes. Números da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), reproduzidos pelo Estadão, mostram um desarranjo desastroso. Por falta de linhas de transmissão, geradoras deixaram de lançar no sistema 33 mil megawatts/hora (MWh). Essa perda chegou a 70,8 mil MWh em 2020 e a 105 mil no período de janeiro a agosto de 2021.
Planejamento, no entanto, foi por muito tempo atividade essencial na administração pública brasileira. A construção do conjunto Urubupungá-Ilha Solteira, por exemplo, concretizou ideias esboçadas no governo paulista na segunda metade dos anos 1940.
As obras da usina de Itaipu materializaram ideias exploradas muitos anos antes pela Comissão Interestadual da Bacia Paraná-Uruguai e encampadas pelo governo militar. Houve mudanças importantes entre a concepção original e a execução final desses projetos, mas em todos os casos predominaram noções de estratégia e de longo prazo, com preocupações inclusive diplomáticas, quando os planos envolviam, como no caso do Rio Paraná, recursos partilhados internacionalmente.
Energia foi sempre um item central de planos de industrialização e de modernização do País. A desindustrialização, assim como o descompasso entre os programas do setor elétrico, mostra o empobrecimento da noção de governo e o desgaste, acelerado nos últimos três anos, das funções administrativas. Não basta falar em “mais Brasil e menos Brasília”. Esse pode ser um belo objetivo, mas para alcançá-lo o País depende de uma Brasília mais produtiva e mais competente.