O governo tornou oficial a decisão de não mais privatizar estatais. Na semana passada, o Executivo retirou sete empresas do Programa Nacional de Desestatização (PND) e excluiu outras três do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Faziam parte dessas duas listas os Correios, EBC, ABGF, Ceitec, Datraprev, Nuclep, Serpro, Conab, PPSA e Telebras.
O decreto de Lula da Silva não surpreende. Desde a campanha eleitoral, o petista nunca escondeu o desejo de interromper o processo de privatizações. A formalização da decisão, no entanto, é uma oportunidade para observar a confusão propositada que o governo faz a respeito das funções do Estado.
“Nosso objetivo é reforçar o papel destas empresas na oferta de cidadania e ampliar ainda mais os investimentos”, afirmou o Ministério das Comunicações, a respeito da exclusão dos Correios e da Telebras do PND. Para o governo, aparentemente, somente empresas públicas seriam capazes de oferecer cidadania aos brasileiros excluídos. Essa lógica expõe uma visão política que não sobrevive à realidade dos fatos.
Se há dois serviços que estão muito próximos da universalização, são o de energia elétrica e o de telecomunicações. A privatização das empresas estatais que dominavam ambos os setores garantiu investimentos que ampliaram a cobertura e o acesso de milhões de brasileiros a serviços básicos que eram considerados artigos de luxo até a década de 1990. Nas mãos da Telebras, telefones fixos eram bens valiosos, cuja fila de espera era contabilizada em anos. No interior do País, só tinha acesso à eletricidade quem aceitava bancar parte do investimento nas redes de energia com recursos próprios.
É evidente que as empresas privadas costumam privilegiar regiões e serviços mais lucrativos. Se não precisa prestar serviços de forma direta, fiscalizar o cumprimento dos contratos pelas empresas é precisamente papel do Estado. Foi para isso que foram criadas as agências reguladoras. Não é coincidência, portanto, que a cobertura universal tenha sido atingida nos setores em que havia órgãos fortes, caso da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Há um segmento, por outro lado, que se notabiliza por ilustrar o exato oposto dessas experiências bem-sucedidas. Com forte presença de estatais estaduais, o setor de saneamento básico escancara nossas mazelas sociais, a ponto de a universalização do acesso à água e esgoto ser objetivo previsto somente para 2033. Os recentes investimentos na área foram fruto do novo marco do setor, aprovado pelo Congresso em 2020, cujos princípios foram deturpados pelo governo para favorecer estatais e dispensá-las de disputar leilões com empresas privadas.
Considerando o discurso de Lula, é muito improvável que estatais que ainda permanecem no PND e no PPI mudem de status em seu governo, como o Porto de Santos. Mesmo administrações que tinham a desestatização como meta falharam miseravelmente na execução da tarefa, caso da gestão de Jair Bolsonaro, que só conseguiu privatizar a Eletrobras e a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa). Tratar o assunto como dogma, o que não é exclusividade nem da esquerda nem da direita, explica por que a União ainda tem hoje 125 estatais.
Ao contrário do que advoga o governo Lula, a oferta de cidadania aos brasileiros não depende de empresas estatais. Ser um cidadão pleno, com direitos e deveres, depende do acesso a serviços essenciais prestados com qualidade. Isso requer tarifas equilibradas e agências reguladoras autônomas, que fiscalizem a atuação de companhias robustas, sejam públicas ou privadas.
É inegável, no entanto, que o setor público não tem recursos à disposição para realizar investimentos em infraestrutura como o setor privado. Nesse sentido, o ideal seria que o Estado abandonasse o discurso político e reconhecesse suas limitações. Dessa forma, poderia dedicar-se à sua função primordial, como a oferta de serviços como saúde e educação, cujo acesso é fundamental para o verdadeiro exercício da cidadania pela população.