O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) estabeleceu que policiais militares (PMs) não são obrigados a utilizar câmeras corporais em operações realizadas em resposta a ataques a agentes das forças de segurança do Estado. A decisão diz respeito à Operação Escudo, deflagrada no litoral paulista depois que um policial militar foi morto no Guarujá, em julho passado. Até que fosse encerrada, a operação deixou um rastro de 28 mortos em 40 dias, tornando-se a ação policial mais letal em São Paulo desde o massacre do Carandiru.
A decisão afronta o bom senso. Justamente nos casos em que a câmera nos uniformes policiais é mais necessária, isto é, quando o controle da atividade policial é mais difícil, a Justiça simplesmente afirma que ela é dispensável. Ou seja, todo o investimento público feito nesse sistema terá sido inútil, a julgar pelo entendimento do TJSP: para os doutos magistrados paulistas, os policiais poderão continuar contando com a opacidade em ações que, sem qualquer controle, se assemelham a pura e simples vingança.
Tudo isso é, por si só, lamentável, mas há duas agravantes. Primeira: esse posicionamento foi dado pelo Órgão Especial do TJSP. Não foi uma decisão disparatada de um juiz de primeira instância ou mesmo de uma das turmas do tribunal. Ou seja, é esse o entendimento da mais alta cúpula do Judiciário paulista.
Mesmo existindo meios de ampliar a transparência da atuação policial, o Judiciário opta pelo caminho oposto, contribuindo para que se mantenha tudo como está. A um só tempo, a mensagem é cristalina e proterva: a Justiça paulista tolera as condições que permitem a violência policial e, pior, dá azo a que essa violência seja cometida impunemente à margem da lei.
Não deve, portanto, surpreender ninguém que as operações policiais sejam tão letais. Há uma consolidada condescendência do Judiciário paulista com esse tipo de atuação. Basta ver o tratamento que o massacre do Carandiru vem recebendo, ao longo de três décadas, do TJSP. A impunidade é consequência direta de uma compreensão do Direito que, indiferente ao princípio da igualdade de todos perante a lei, cuida zelosamente dos interesses do poder estatal.
A segunda agravante refere-se ao contexto da decisão. O Órgão Especial do TJSP não estava discutindo a hipótese teórica de um eventual risco de violência policial. A Justiça paulista tinha diante de si a operação policial estadual mais violenta deste século, com dezenas de mortes, e mesmo assim entendeu que as câmeras nos uniformes dos agentes não eram obrigatórias.
Há aqui muito a entender sobre o quadro de violência policial que se instaurou em muitas regiões do País. Não é que faltem indícios ou elementos probatórios a respeito de ações ilegais de agentes de segurança. O cenário é precisamente o oposto: há muitas e constantes evidências da violência policial, de ações que extrapolam os limites da lei, de medidas que violam direitos básicos da população. No entanto, simplesmente não se quer ver. Nega-se a realidade.
O TJSP decidiu que as câmeras nos uniformes policiais não são obrigatórias mesmo diante de todas as suspeitas de abuso por parte do poder estatal. Em setembro, quando o presidente do tribunal, desembargador Ricardo Anafe, derrubou a liminar que obrigava a PM paulista a usar as câmeras nos uniformes de seus agentes em todas as operações que respondessem a ataques contra PMs, o argumento no tribunal era que, pasme o leitor, a obrigatoriedade das câmeras poderia levar a um “aumento das agressões aos agentes públicos, com grave lesão à segurança pública”.
Essa descarada inversão factual do que ocorreu no litoral paulista ilustra por que razão a violência de Estado segue impune quando as vítimas vivem em regiões pobres das cidades. Simplesmente se negam os fatos, que convenientemente são substituídos por hipóteses carentes de qualquer fundamento.
Roga-se que essa decisão judicial seja revertida, se não no próprio TJSP, em tribunais superiores. Além de lembrar que no País existe direito à vida e de que não há pena de morte nem julgamento sumário, cabe advertir: a Justiça deve servir à lei e ao direito, não à barbárie.