A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, que, obviamente, deveria zelar pela higidez constitucional das matérias que aprecia, acaba de avalizar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que atenta contra um dos princípios mais comezinhos do regime republicano inscrito na Lei Maior: a igualdade de todos perante a lei, sem privilégios de qualquer natureza. Trata-se da PEC 10/2023, apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a fim de resgatar a excrescência do quinquênio – um aumento automático de 5% nos salários de algumas categorias do serviço público a cada cinco anos de trabalho.
A PEC 10/2023 é degenerada na origem. A concessão dessa gratificação salarial cumulativa aos servidores das chamadas carreiras jurídicas – que já compõem, é bom lembrar, a elite do funcionalismo no Brasil – é mais um privilégio absolutamente incompatível com a noção mais elementar que alguém possa ter de República. Ademais, está-se diante de uma imoralidade em um país onde metade da população ainda não tem acesso a esgoto sanitário em pleno século 21 e onde quase metade das crianças vive em situação de pobreza, condenadas, portanto, a um futuro nada auspicioso.
Porém, mesmo que o Brasil fosse um país rico e a maioria de sua população desfrutasse de uma qualidade de vida de país nórdico, o pagamento de quinquênio para uma casta de servidores – magistrados, membros do Ministério Público, da Advocacia Pública da União, Estados e municípios, delegados da Polícia Federal e servidores dos Tribunais de Contas – seguiria como o acinte à moralidade pública que é. Ao chancelar essa PEC lesa-sociedade, que seguiu para o plenário, a CCJ do Senado virou as costas para o País e debochou das carências de milhões de brasileiros privados de uma vida digna.
O nível da discussão na CCJ demonstrou que seus membros parecem crer que o Poder Legislativo por vezes deve trabalhar para colocar o Estado a serviço da casta de servidores, e não da sociedade. O relator da PEC 10/2023 no colegiado, senador Eduardo Gomes (PL-TO), chegou ao cinismo, não há outra maneira de dizê-lo, ao defender a volta do quinquênio. “A gente precisa gastar melhor o dinheiro público”, afirmou o sr. Gomes, “e talvez gastar melhor signifique gastar com os bons funcionários públicos.”
Além de cínico, o argumento do relator é falacioso. Afinal, o que os servidores das carreiras jurídicas terão de fazer para merecer o incremento de 5% em seus vencimentos a cada cinco anos? Rigorosamente nada. Ao que parece, o único requisito é ter sido aprovado em concurso público. E não se pode nem dizer que eles deverão permanecer na carreira, pois o quinquênio também valerá, caso a PEC seja promulgada, para os servidores já aposentados.
À guisa de justificação, Pacheco alega que é preciso transformar as carreiras jurídicas públicas em algo mais “atrativo”, tanto para “os jovens operadores do direito” como para os que já estão “no fim de suas carreiras”. Entende-se a necessidade de progressão salarial, mas não é disso que se trata. As carreiras jurídicas públicas já são atrativas, como demonstra a acirrada disputa por vagas a cada concurso público. E o são justamente porque compõem a parcela mais bem remunerada não apenas do serviço público, mas do País.
Os defensores dos privilégios para membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, entre outros, alegam desproporção salarial em relação às carreiras jurídicas na iniciativa privada. Contudo, com boa dose de malícia, só enxergam os milhões de reais que poucas bancas conseguem amealhar, e não a massa de advogados que batem ponto nos fóruns Brasil afora para ganhar, em média, nem um terço do que ganha um juiz em início de carreira.
Para adicionar insulto à injúria, o quinquênio ainda seria pago a título de indenização, e não remuneração, de modo a não incidir sobre o teto constitucional do funcionalismo público. Eis uma breve aula acerca dos percalços de uma República que há quase 135 anos luta para se afirmar como tal.