O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou ontem, a escassos 107 dias da eleição, que desistiu de tentar a reeleição, ampliando o caráter dramático da campanha presidencial americana.
Pode-se ler sua decisão como um gesto de grandeza e espírito público, ante o fato de que sua permanência na disputa parecia ampliar drasticamente as chances de seu adversário, o ex-presidente Donald Trump, tido e havido como uma ameaça à democracia no país. Mas também é possível concluir que Biden não tinha alternativa, ante o fato de que sua candidatura estava sangrando – com perdas substanciais em financiamento e em apoio dentro de seu próprio partido. A pressão por sua desistência se tornou irresistível, e Biden, político experientíssimo aos 81 anos, concluiu o óbvio: sua candidatura estava morta.
Foram semanas de agonia após o desempenho desastroso no já antológico debate com Trump na TV. Recorde-se, aliás, que os democratas haviam desafiado Trump para o debate antes mesmo da confirmação das candidaturas porque tinham interesse em mostrar que, ao contrário das aparências, Biden estava em forma e pronto para o combate. Como se sabe, não foi o que se viu: os americanos, atônitos, puderam constatar que seu idoso presidente é um homem com limitações evidentes para o desafio de uma campanha eleitoral e, o mais importante, de governar os Estados Unidos por mais quatro anos.
Para piorar, as últimas semanas foram particularmente generosas para a campanha de Trump. Além da evidente fragilidade do adversário, o ex-presidente teve vitórias judiciais expressivas, que praticamente limparam seu caminho rumo à Casa Branca, onde terá poder para enterrar todos os inúmeros processos que tem contra si. Ademais, mas não menos importante, Trump sofreu uma tentativa de assassinato durante um comício, transformando-se automaticamente em mártir e em santo para seus inúmeros devotos. A sobrevivência de Trump foi transformada por sua campanha em prova de que o ex-presidente é um enviado de Deus para salvar a América. Nada menos.
Não foram poucos os que vaticinaram que a eleição, mantido o atual cenário, estava liquidada, ainda que as pesquisas de intenção de voto não tenham mostrado variações muito significativas em favor de Trump mesmo depois do atentado. E isso possivelmente se dá porque os Estados Unidos estão solidamente divididos entre democratas e trumpistas. A luta será para convencer os eleitores que não se identificam automaticamente com um ou outro – e eles terão peso significativo para decidir a eleição.
Para o Partido Democrata, começa agora a busca por um candidato viável, depois de semanas de angústia. Biden endossou sua vice, Kamala Harris, que não é exatamente um portento eleitoral, mas a esta altura não é possível imaginar uma disputa aberta entre os democratas pela vaga na chapa. Logo, salvo surpresas de última hora, os democratas irão de Kamala mesmo.
Ainda que abundem incertezas no campo democrata, a sensação certamente é de alívio. Não será mais necessário preocupar-se com cada frase dita por Biden – cujas declarações, todas elas, eram tomadas como medida de sua senilidade. A energia do partido poderá ser usada agora exclusivamente para construir uma candidatura forte o bastante para enfrentar Trump. A rigor, qualquer um seria melhor que Biden para cumprir essa missão.
É preciso energia e vigor para enfrentar Trump, que transformou o tradicional Partido Republicano numa seita que o idolatra, que nunca se conformou com a democracia e com sua derrota na eleição de 2020, que incitou uma tentativa de golpe de Estado e que tem profundo desprezo pelas instituições e pelos americanos que não o apoiam.
Em gritante contraste com o delinquente Trump, Biden sai da disputa como um político de grande estatura, que só foi abatido pelas limitações de sua idade, disputa que é impossível vencer. Já no campo moral, Biden ganhou de lavada.