Existe no governo paulista um embate entre duas visões sobre a polícia, embate este que pode ter reflexos muito além dos limites territoriais do Estado de São Paulo. Desde 2014, vem sendo implementada a política de câmeras nos uniformes dos policiais. Os resultados são muito positivos e, em certo sentido, disruptivos. Quando a atuação policial é registrada por câmeras de vídeo, há um outro horizonte probatório. Entende-se a dinâmica da abordagem com enorme riqueza de detalhes. São colhidos mais elementos, como a presença de testemunhas que não haviam sido mencionadas num primeiro momento. De alguma forma, tem-se aquilo que sempre foi buscado e, por limitações tecnológicas, antes não era possível ter: o registro objetivo da atividade policial.
No entanto, o novo patamar de conhecimento sobre a atividade policial vem causando não pequeno desconforto em quem se acostumou aos moldes antigos, sem transparência. Era um cenário – não há como negar – confortável para os maus policiais. Não havia contraprova. Era apenas a voz do agente estatal a respeito dos fatos, contra a versão dos “bandidos” e “criminosos”.
Esse embate ficou muito nítido na Operação Escudo, realizada no Guarujá, que em 40 dias matou 28 pessoas. Foi a operação policial mais letal no Estado de São Paulo desde o massacre do Carandiru, em 1992. Há suspeitas de abusos e de execução sumária por parte da polícia. Do outro lado, o governo estadual paulista afirma que todas as mortes decorreram da reação de criminosos à incursão da polícia. O fato é que ninguém sabe ao certo o que ocorreu, por uma simples razão. A maioria das mortes ocorreu quando os policiais não estavam usando as câmeras corporais nas fardas – ou mantinham os equipamentos desligados.
Para muitos, o que ocorreu no litoral paulista evidencia a necessidade de manter e reforçar a política de bodycams nos policiais. Se as cenas tivessem sido registradas, os agentes que atuaram corretamente estariam protegidos das atuais suspeitas sobre sua conduta e aqueles que eventualmente se excederam, ou agiram além do que a lei e o treinamento policial orientam, seriam devidamente responsabilizados.
No entanto, paradoxalmente, há quem veja na experiência da Operação Escudo a oportunidade para a reversão da política de câmeras nos uniformes policiais que vem sendo implementada há quase uma década. A operação seria a grande prova do “risco” que os policiais correm com as câmeras, como se o que pudesse ter sido registrado fosse dificultar o seu trabalho.
Não há como tapar o sol com a peneira. A resistência às câmeras é uma declaração de que a polícia, para fazer o seu trabalho, precisa dispor de certo nível de invisibilidade. Nem tudo o que ela faz deveria vir à luz do dia – isto é, nem tudo deveria ser acessível à população –, pois, nesse caso, os agentes já não teriam a liberdade de fazer “o que precisa ser feito”. É a defesa da polícia à margem da lei.
Sob nenhum ponto de vista é justificável reduzir intencionalmente a transparência da atividade estatal. A câmera no uniforme dos agentes ajuda a garantir os direitos dos cidadãos durante as abordagens e ações policiais. Também contribui para a produção de provas judiciais e para a formação e treinamento dos agentes públicos. Além disso, a transparência beneficia o bom trabalho dos policiais. Com o registro em vídeo dos fatos, as ações policiais em defesa da lei podem ser facilmente justificadas. Em vários julgados, o Poder Judiciário tem incentivado o uso da tecnologia como meio de dissipar dúvidas e assegurar direitos.
A história das câmeras nos uniformes dos policiais paulistas mostra que mesmo um indiscutível avanço gera resistência – uma resistência motivada não por efeitos colaterais indesejados, mas precisamente pelos resultados positivos. Como as bodycams estão conseguindo expor como os policiais atuam, há quem queira desativá-las.
Não basta desenvolver uma boa política pública. É preciso resistir perseverantemente ao boicote de quem estava muito satisfeito com o ancien régime.