Diversos países têm um livro de referência ao qual os cidadãos, de tempos em tempos, recorrem para retemperar seu entendimento da sociedade em que vivem.
O exemplo hors-concours é, com certeza, a França, que compartilha com os Estados Unidos a obra-prima de Alexis de Tocqueville A Democracia na América (1835). O Brasil é um caso especial. Para identificar o “nosso” livro, devemos, primeiro, descartar a geração dos críticos da Constituição Republicana de 1891, quase todos medíocres e propensos a ouvir o canto de sereia de Mussolini. Depois da Segunda Guerra, sim, passamos a contar com autores do quilate de Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro, Simon Schwartzman e José Murilo de Carvalho. Mas, sem demérito para nenhum desses, penso que o status de “clássico” cabe ainda a Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado em 1936 e diversas vezes reeditado.
Minha avaliação não se deve apenas à beleza da escrita e à vastidão do conhecimento histórico de Sérgio Buarque. Deve-se, a meu juízo, à atualidade da questão que ele suscitou. Não nos esqueçamos de que a obra a que me refiro data de meados dos anos 1930, época em que a maioria de nossa população vivia no interior e em pequenas comunidades e era quase toda analfabeta. Mesmo assim, o que Sérgio se indagou foi: por que o Brasil parecia incapaz de construir um verdadeiro Estado? Sim, caro leitor, eu escrevi “parecia”, mas talvez o verbo me esteja traindo, pois não descabe indagar se, finalmente, temos um verdadeiro Estado. Quem aterrissa em Brasília por certo avista, lá embaixo, o Palácio do Planalto, as conchas invertidas do Congresso e todos os demais edifícios que sugerem a pujante presença de um Estado. O saudoso mestre Hélio Jaguaribe costumava dizer que o Estado brasileiro era o mais moderno do Terceiro Mundo. Mas, nesses quase 90 anos, algo parece não ter se encaixado. Pior: a estagnação da economia é um claro reflexo da debilidade do Estado.
Raízes do Brasil parte de um valioso acerto. Ou pelo menos de um aparente acerto, ao descartar a monocultura, a escravidão, o patriarcalismo – ou seja, toda a cantilena da colonização ibérica. Mas logo reafirma que o principal impedimento à emergência do Estado são os grupos primários – leia-se, a família extensa, avessa a qualquer impessoalidade. Aqui, sem dúvida, começamos a pisar em terra escorregadia. “A solidariedade entre (grupos primários) – o autor prossegue – existe somente onde há vinculação de sentimentos mais do que relações de interesses – no recinto doméstico ou entre amigos” (Holanda, página 10). Essa premissa leva-o a tipificar a contraposição entre laços sentimentais e Estado remontando à tragédia Antígona, de Sófocles, escrita há mais de 2.400 anos. A razão dessa escolha é indicada nesta bela passagem: “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e ainda menos uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. É só pela transgressão da ordem doméstica e familiar que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade”. O problema é que Sérgio Buarque, embora invoque o antagonismo entre a heroína Antígona e Creonte, o rei de Tebas, para frisar o caráter universal da incompatibilidade entre os dois referidos, baseia praticamente toda a sua exemplificação histórica e cultural na história ibérica.
Descontem-se pequenos equívocos de leitura, como o que ocorre na página 101, em que Sérgio se refere a Antígona como irmã do rei Creonte. Na peça de Sófocles, ela não é irmã, mas futura nora, por ser noiva de Héron, filho de Creonte. Mais importante é o fato de Sérgio incorrer num equívoco que atribui a Max Weber, qual seja, o de dar um peso excessivo à esfera dos valores, em detrimento de fatores mais objetivos. Referindo-se à ideia de um Estado em sua plena configuração impessoal – já “depurado” de todo vínculo primário, Sérgio afirma: “A ideia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo os seus destinos, é dificilmente inteligível para os povos da América Latina” (Holanda, página 138).
Ora, dessa formulação deveria decorrer que o Estado em sua plena configuração requer uma superestrutura normativa capaz de limitar quaisquer excessos que ocorressem entre os cidadãos, tal função não poderia ficar na dependência de uma ordem normativa apenas valorativa, e sim a uma ordem jurídica respaldada na força.
Saltemos para 2025. Hoje, uma enorme parcela da população vive em grandes metrópoles, não em comunidades rurais. A força de sentimentos de discórdia ou de concórdia como balizadores do comportamento social declinam de forma acelerada. A criminalidade não só aumenta, como se torna a cada dia mais bestial. E mesmo em Brasília, onde o esqueleto de um Estado é perceptível, o que mais vemos são interesses (não sentimentos) antiestatais.