Até poucas décadas atrás, nossa pobreza era mais ou menos igual à de hoje, mas vivíamos bem, tínhamos até certo senso de humor, porque tínhamos um excelente bode expiatório: Portugal.
Toda vez que um indivíduo mencionava uma mazela, outro replicava: culpa de Portugal. Culpa da colonização. Azar nosso termos sido descoberto por um país pequeno, pobre e atrasado. Com seu inexcedível brilho, o compositor Chico Buarque ressaltou que xingar o Brasil era pouco, era preciso injuriá-lo, e tascou: um dia vamos nos tornar um grande Portugal. Pois é, ilustre poeta, que pena você ter errado por uma margem tão larga. Quem nos dera se tivéssemos realizado o sonho de nos tornarmos um grande Portugal. Hoje, somos um país estagnado, incapaz de retomar o crescimento econômico, vendo a criminalidade subir à estratosfera e moradores de rua se apinhando até nos melhores bairros das melhores cidades.
Quer saber de uma coisa pior? Somos um país atordoado, desnorteado, sem rumo. Exceção feita àqueles senhores que ocupam funções públicas em Brasília, nem elites temos mais. Temos lideranças em potencial, mas amedrontadas, com medo de pôr a boca no trombone, ainda mais agora que uma estúpida polarização política veio engordar nosso triste repertório.
Chico Buarque, como todos sabemos, é filho de um gigante de nossas letras, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o organizador dos cinco primeiros volumes de uma monumental História Geral da Civilização Brasileira. Há exatos 87 anos, Sérgio percebeu que algo havia de errado em nossa mania de usar Portugal como uma Geni. Refiro-me a 1936, ano da publicação do clássico Raízes do Brasil. O problema de fundo seria nossa incapacidade de construir um Estado impessoal, no qual as leis fossem levadas a sério; menos ainda um Estado democrático. A raiz de tal incapacidade seria o fato de só compreendermos a linguagem da afeição e do ódio, sentimentos contraditórios, mas provenientes, ambos, do coração. Etimologicamente, seríamos “cordiais”, uma vez que o adjetivo cordial provém de coração, indicando que somos emocionais até a medula, refratários a toda e qualquer forma de impessoalidade. “A ideia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal pairando sobre os indivíduos e presidindo seus destinos é dificilmente inteligível para os povos da América Latina (Editora José Olympio, página 138).”
Mas é inegável que há um problema, dado que todo indivíduo tem um coração; segue-se que impedimentos à construção de Estados juridicamente bem ordenados podem se manifestar em qualquer parte do planeta. Isso, precisamente, é o que diz Sérgio Buarque. A malfazeja “raiz do Brasil” a que ele se refere não é Portugal, mas Sófocles (496-406 a.C.) ou, melhor dizendo, Antígona, personagem-título de sua maravilhosa tragédia. Não é por princípio que ela se opõe a Tebas, sua cidade-Estado, mas ao fato de o rei Creonte não querer dar um sepultamento digno ao irmão de Antígona, exigindo que o cadáver dele permaneça ao relento, fora dos muros da cidade, exposto à sanha de animais e aves malignas.
Observe-se que Sérgio, substituindo Portugal por Antígona, não atingiu realmente seu objetivo de livrar Portugal da pecha de Geni. Para fazê-lo, precisaria ter examinado a formação do Estado moderno em outras paragens. Tendo vivido dois anos (1930-1931) na Alemanha, lá ele teria encontrado farto material sobre a questão que ora nos ocupa. Na década de 1920, em Munique, Hitler e seus asseclas já aprontavam todas as arruaças concebíveis, colimando organizar seu partido “nacional-socialista” e semear na sociedade sua alucinação antissemita. Em 1934, quando Sérgio começou a escrever Raízes do Brasil, o Führer ordenou a dizimação de todos os dirigentes da SA (Sturmabteilung, divisão de assalto), inclusive de seu chefe, Ernst Röhm, estreito colaborador de Hitler nos tempos de Munique.
A verdade, felizmente, é que perdemos nosso bode expiatório. Em meados dos anos 1930, quando Sérgio escreveu Raízes, uma ampla maioria da população brasileira trabalhava na agricultura e vivia em pequenas coletividades interioranas, quase toda analfabeta e submissa aos senhores da terra. Por si só, esse fato explica por que haveríamos de estranhar alguma “entidade imaterial” pairando sobre nossas cabeças. Atualmente, o quadro demográfico é o inverso. Quase todos vivemos em metrópoles ou grandes cidades e temos acesso instantâneo a uma rede nacional de comunicações. Se essa colossal inversão não resultou num Estado juridicamente ordeiro, a explicação é que um tal Estado nunca nasce diretamente da composição demográfica ou de valores tomados em abstrato. O elemento fundamental é sempre a atuação das elites. No Brasil, as que atuam dentro da máquina estatal optaram por se apossar dela, em vez de desenvolvê-la. As que atuam (ou poderiam atuar) de fora para dentro, balizando-a, sempre foram exíguas, até pela pobreza do País e, no passado recente, porque desistiram de sua missão e da simples obrigação de expressar suas ideias na arena pública.
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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
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