Em 2012, o filósofo búlgaro naturalizado francês Tzvetan Todorov publicou um magnífico ensaio intitulado Os inimigos íntimos da democracia (Paris, Editora Lafont), que, infelizmente, não chegou a ser discutido no Brasil.
Seu argumento principal é de que não existe um modelo político capaz de competir em legitimidade mundial com a democracia representativa. Esta sofre ameaças graves, mas internas. De fora para dentro não tem adversários à altura no plano das ideias nem no das armas.
No Brasil, essa linha de argumentação costuma ser recebida com ironia. Primeiro, o próprio regime democrático é contestado como uma cínica forma de dominação, ou como uma engrenagem cuja única finalidade é transferir um naco do erário para ladrões, banqueiros e políticos.
Hoje, com a licença do leitor, vou discorrer sobre alguns dos paradoxos que essa discussão envolve. Afirmo, em primeiro lugar, que concordo com grande parte das ironias acima expostas. Segundo, que discordo radicalmente delas, sou um democrata liberal de quatro costados e tenho para mim que só os muito obtusos não percebem a necessidade de conviver e pelejar com esse megaparadoxo.
Comecemos por uma singela estatística. Em sua avaliação bianual, a Economist Intelligence Unit (seção de pesquisas da revista inglesa The Economist) considera que só 8,4% da população mundial, compreendendo 23 países, vivem sob regimes “plenamente democráticos”. Em seguida vem um grupo com 52 países, equivalendo a 41% da população mundial, que eles designam como “democracias defeituosas” – e fazem muito bem, pois trata-se de uma mixórdia assaz heterogênea. África do Sul, Argentina e Brasil aparecem de braço dado, e bem mal, na foto: a África na 45.ª posição na classificação geral dos 167 países, a Argentina na 48.ª e nós na 49.ª posição na classificação geral dos 167 países pesquisados.
Aí já temos o primeiro dos paradoxos a que me referi. Os 8,4% da população mundial que vivem em países democráticos inegavelmente se destacam como os principais representantes do princípio de legitimidade predominante do mundo. Estarei, talvez, a dizer um absurdo? Basta lembrar que numerosos países que nada têm de democráticos com frequência se valem do adjetivo “democrático” em seus títulos oficiais (quem não se lembra das “repúblicas democráticas” do leste europeu nos tempos da União Soviética?), justamente com a pretensão de compartilhar uma legitimidade a que evidentemente não têm direito.
Sabemos todos que insistir na superior legitimidade das democracias é recebido com indisfarçável ironia por milhões de cidadãos neste nosso mundo de Deus. Já imagino o Amazonas de ironia que cairá sobre minha cabeça em seguida, uma vez que vou defender as democracias no tocante à questão social. Volto a Todorov: “Os habitantes dos países democráticos, embora muitas vezes protestem contra suas condições de vida, vivem num mundo mais justo que aqueles dos outros países. São protegidos por leis; participam da solidariedade que permeia a sociedade, que beneficia os idosos, os doentes, os desempregados, os miseráveis; e podem invocar os princípios de igualdade e de liberdade, até mesmo um princípio de fraternidade, que em alguma medida prevalece nas sociedades democráticas”. Aqui, a proverbial ironia de que falei anteriormente vem a calhar, pois justo agora, no Brasil, lulistas e bolsonaristas vêm sendo criticados por suas políticas expansionistas, ou seja, pelo excesso de gastos na área social – excesso que a maioria dos economistas considera imprudente em relação à prioridade das prioridades, que é a retomada do crescimento econômico.
Confrontados com tão complexas opções, não temos como evitar a questão-chave: queremos mesmo ser um país civilizado, vale dizer, mais democrático e economicamente mais desenvolvido que hoje? Aqui o verbo cabível é querer, pois a democracia é uma construção, um esforço coletivo, um crafting político. Querendo já é difícil, não querendo é impossível. A história registra diversos casos de países que estiveram acima das nuvens, bem perto do céu, e despencaram para as profundezas do inferno.
Uma resposta adequada deve começar pela economia, já que um país de miseráveis forçados a viver sob o tacão de uma pequena elite endinheirada dificilmente dará certo. Pior ainda se a escassez dos miseráveis for cinzelada por gastos públicos e hábitos privados de consumo que beiram ao insulto. E o Brasil, convenhamos, é exatamente isso. Relembrar o “orçamento secreto” que uma parcela dos políticos reparte à luz do dia é chover no molhado. Milhões não sabem que refeição terão amanhã, mas milhares decidem com grande antecedência que farão um passeio pela Europa ou farão compras na Flórida. Muitas famílias que se consideram cultas e humanistas acham normal o Estado arcar com as anuidades de seus filhos nas universidades públicas. Não lhes vem à cabeça que tais anuidades poderiam ser custeadas com o que gastam numa viagem ou, em muitos casos, com o que despendem numa fantasia de carnaval.
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SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
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