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Briga de foice

Tentativas de ampliar a cesta básica e o alcance do imposto do pecado podem atingir a espinha dorsal da reforma tributária e remetem a práticas que conduziram o atual sistema ao colapso

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Por Notas & Informações
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A reta final da tramitação dos projetos de lei para regulamentar a reforma tributária avança por um caminho bastante previsível. A alíquota padrão do futuro Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dificilmente será mantida em 26,5%, como o governo havia estimado ao enviar as propostas ao Legislativo. Os pareceres ainda não estão fechados e, até lá, os principais setores da economia farão de tudo para tentar garantir alíquotas mais baixas para si mesmos.

Trata-se de um movimento legítimo, mas que tem como consequência a elevação da alíquota padrão dos demais setores. De forma geral, essa tem sido a resposta do Ministério da Fazenda ao analisar os pleitos, principalmente em se tratando de temas sensíveis como a cesta básica, cuja lista de itens totalmente desonerados é bastante restrita.

Essa escolha não é nenhuma maldade. Nos últimos anos, a título de beneficiar os mais vulneráveis, a cesta básica foi ampliada até chegar a 745 alimentos, de acordo com um relatório elaborado pelo Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas e divulgado pelo antigo Ministério da Economia em 2021.

Com uma lista tão ampla, o governo deixou de arrecadar R$ 34,7 bilhões no ano passado, valor que equivalia a um quinto do orçamento do Bolsa Família, de R$ 175,7 bilhões. A diferença é que a desoneração da cesta básica não beneficia apenas os mais pobres, mas alcança, sobretudo, famílias de renda mais elevada, que consomem mais produtos e em maior quantidade.

O tema já havia sido debatido pelo Congresso na votação da emenda constitucional que aprovou a reforma tributária sobre bens e serviços. A ideia inicial do governo era reonerar todos os itens da cesta básica e devolver os impostos apenas aos mais pobres, na forma de cashback.

A proposta, no entanto, não avançou, e o governo optou por criar duas listas – uma, de 18 itens, com impostos zerados e outra, um pouco maior, com desconto de 60% sobre o IVA cheio. Carnes e outras proteínas de origem animal fazem parte dessa segunda, o que já bastou para criar uma celeuma com o agronegócio e representantes de supermercados.

Ainda assim, o governo mantinha um discurso único, ainda que o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, não escondesse sua preferência pelo cashback – visão que é compartilhada pelo Banco Mundial. Para Appy, a desoneração generalizada tem caráter regressivo, tende a se perder ao longo da cadeia e pode ser capturada por agentes econômicos para ampliar sua margem de lucro.

O discurso unificado, no entanto, sofreu um grande revés na semana passada, quando o presidente Lula da Silva defendeu a inclusão do frango entre os itens da cesta básica que serão isentos da cobrança de impostos. “Não vamos taxar frango, é o que o povo come todo dia”, afirmou, em entrevista ao UOL.

Era tudo que os setores econômicos queriam ouvir. Agora que o presidente abriu a porteira das exceções, parlamentares querem acrescentar não apenas o frango, mas todos os tipos de pescado e carne bovina na lista desonerada, inclusive os tipos mais nobres. Como mostrou o Estadão, se a investida der certo, a alíquota padrão do futuro IVA subirá para 27,1%, segundo uma ferramenta elaborada pelo Banco Mundial.

Fingindo não compreender o princípio da neutralidade da reforma, os deputados querem distribuir essas bondades sem elevar a alíquota padrão. Como não há formas de operar esse milagre, alguns já defendem sobretaxar jogos de azar eletrônicos e os carros elétricos com o Imposto Seletivo. O imposto do pecado, ao menos em tese, visa a desestimular o consumo de produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente, mas cada vez mais parece assumir um caráter arrecadatório.

O que Lula da Silva e os parlamentares se recusam a entender é que cada item que garante um tratamento especial na reforma sobrecarrega os demais. Esses movimentos não apenas podem comprometer a espinha dorsal da proposta, como remetem a práticas que conduziram o atual sistema tributário ao colapso. Foi de exceção em exceção que chegamos a um dos modelos mais confusos, regressivos e injustos do mundo.

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