O País tem um problema a resolver. O presidente da Câmara, Arthur Lira, vem atuando como se fosse um monarca absolutista, sobre o qual os limites da Constituição não teriam efeito. Perante as leis da República, ele estaria acima do bem e do mal. Seu comportamento em relação à tramitação das medidas provisórias (MPs), descumprindo e desautorizando o rito constitucional, é apenas a ponta de um iceberg de uma compreensão absolutamente distorcida sobre as funções e os contornos da presidência da Câmara dos Deputados.
Em fevereiro, Arthur Lira teve uma vitória absolutamente espetacular na recondução à direção da Câmara por mais um biênio (2023-2024). De um total de 513 deputados, 464 votaram nele. Na história recente nacional, considerando os últimos 50 anos, foi a maior votação absoluta de um candidato à presidência da Câmara. O segundo colocado, o deputado Chico Alencar, obteve 21 votos, o que corresponde a menos de 5% do total dado a Arthur Lira. Num país polarizado política e ideologicamente, o deputado do PP de Alagoas reuniu em torno de si todo o mundo da política, do bolsonarismo ao lulopetismo. Teve nada mais nada menos do que o apoio de 20 partidos, incluindo duas federações.
O resultado da votação para a presidência da Câmara diz muito sobre as disfuncionalidades do sistema representativo nacional e o próprio comportamento dos partidos, com um pragmatismo que asfixia qualquer pretensão de identidade programática. Mais do que apoio genuíno, a votação acachapante foi o símbolo do receio, compartilhado pela grande maioria das legendas, de se opor a Arthur Lira. Ninguém ousou enfrentá-lo.
Fosse o presidente da Câmara um exemplo de obediência à Constituição, à lei e ao Regimento Interno, a inexistência de resistência ao seu comando já seria bastante problemática para a vida institucional do País. No Estado Democrático de Direito, o exercício do poder sempre exige controle. E parte importante do controle do poder político fica a cargo da oposição.
No entanto, o que se vê em Arthur Lira é uma situação bem diferente. Ele não é afeito aos ritos institucionais. No biênio 2021-2022, a presidência da Câmara foi marcada por atos de abuso de poder, atropelos, manobras regimentais e descumprimento da legislação. Ele pôs em marcha um movimento de alteração profunda da dinâmica parlamentar, com efeitos de curto, médio e longo prazos. Por exemplo, a mudança do Regimento Interno da Câmara, realizada em maio de 2021, reduziu, num rito já facilitado pela pandemia, ainda mais o espaço da oposição para fazer obstrução, o que afeta diretamente a qualidade do debate e da representação parlamentar.
No entanto, em algumas circunstâncias, mesmo esse rito alterado não foi seguido. Por exemplo, Arthur Lira valeu-se de sessões de um minuto, às seis da manhã, para a contagem do prazo regulamentar. Pôs em votação o projeto de lei sobre o Imposto de Renda (IR) sem divulgar aos próprios deputados o texto final que estava sendo apreciado.
Outra frente de distorção da representação e do debate é o uso abusivo de grupos de trabalho, sobre os quais o presidente da Câmara tem mais discricionariedade e controle, em vez das comissões especiais, cuja composição precisa expressar a representatividade dos partidos. O caso paradigmático do momento é o principal tema em tramitação na Câmara, a reforma tributária, que está sendo analisada em um grupo de trabalho, e não em uma comissão especial.
Esse histórico de rolo compressor de Arthur Lira traz sérias preocupações. E o pior é que, além de ter sido incapaz de suscitar oposição, foi o que lhe rendeu 464 votos na eleição de fevereiro. Os partidos e o sistema político como um todo têm sido coniventes.
É preciso vigilância. Não cabe na República exercício do poder além do que dispõe a Constituição. Jair Bolsonaro tentou e foi contido pelo Judiciário e pelo eleitor nas urnas. Agora, é preciso conter Arthur Lira. Na República, não há imperadores. O funcionamento da Câmara tem de ser expressão de democracia, e não o contrário.