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O jornalista Carlos Alberto Di Franco escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Autocrítica de um grande jornalista

A crise da imprensa é um reflexo da nossa própria crise. Impõe-se, portanto, um frequente exercício de autocrítica pessoal e profissional

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Martin Baron, um ícone do jornalismo norte-americano, editor do The Boston Globe (2001-2012) e The Washington Post (2012-2021), publicou recentemente um livro importante que ganhou versão em espanhol: Frente al Poder: Trump, Bezos y el Washington Post (“De frente com o poder: Trump, Bezos e o Washington Post”, sem edição em português).

O livro, oportuno e instigante, põe o dedo em algumas de nossas feridas. “O jornalismo tem um papel importante em responsabilizar os poderosos, incluindo os políticos, mas isso não significa que tenhamos de ser adversários constantes dos políticos, adversários constantes dos empresários, adversários constantes de qualquer instituição ou de qualquer pessoa com quem não concordemos. De fato, há muitos jornalistas que se comportam como ativistas e nós temos a obrigação de manter nossa independência e nossa objetividade.”

Baron dá uma estocada no ativismo de certa mídia que anda de costas para os fatos e faz a opção ideológica pelo mundo das narrativas. Devemos “manter-nos fiéis aos fatos, exercer o jornalismo com honestidade e integridade, e verificar e contrastar bem as notícias”.

Jornalismo é a busca do essencial, sem adereços, adjetivos nem adornos. Sua força não está na militância, mas no vigor persuasivo da verdade factual e na integridade e no equilíbrio da sua opinião. A credibilidade não é fruto de um momento. É o somatório de uma longa e transparente coerência.

A sociedade está cansada do clima de radicalização que tomou conta da agenda pública. Sobra opinião e falta informação. Os leitores estão perdidos num cipoal de afirmações categóricas e pouco fundamentadas, declarações de “especialistas” e uma overdose de colunismo militante. Um denominador comum marca o achismo que invadiu o espaço outrora destinado à informação qualificada: a politização.

A democracia reclama um jornalismo vigoroso e independente. Comprometido com a verdade possível. O jornalismo de qualidade exige cobrir os fatos. Não as nossas percepções subjetivas. Analisar e explicar a realidade. Não as nossas preferências, as simpatias que absolvem ou as antipatias que condenam. Isso faz toda a diferença e é serviço à sociedade. Em tempos de ansiedade digital, crescente e dispersiva, é preciso recuperar o norte da informação bem apurada. Hoje, mais que nunca, numa sociedade polarizada e intolerante, é preciso resgatar o vigor da informação objetiva.

O grande equívoco da imprensa é deixar de lado a informação e assumir, mesmo com a melhor das intenções, certa politização das coberturas. Os desvios não se combatem com o enviesamento informativo, mas com a força objetiva dos fatos e de uma apuração bem conduzida.

Baron defende a independência como fundamento da credibilidade. O jornalismo não pode se aliar a partidos políticos. “Nosso único aliado é a verdade.” E faz um forte chamado à coerência: “A mentira é um dos nossos inimigos, mas não o único. Muitos poderosos mentem, mas não podemos cobrá-los se nós não formos especialmente exemplares na boa conduta”.

De fato, não há jornalismo de qualidade sem jornalistas comprometidos com princípios e valores éticos. A credibilidade não admite esquizofrenias morais. É preciso apostar na honestidade, na coerência, na lealdade a princípios e valores fortes. Não se constrói um bom produto editorial sobre a areia movediça do cinismo. “O bom jornalista acredita que a verdade existe, embora seja difícil encontrá-la.” A crise da imprensa é um reflexo da nossa própria crise. Impõe-se, portanto, um frequente exercício de autocrítica pessoal e profissional.

Sem jornais a democracia não funciona. O jornalismo não é antinada. Mas também não é neutro. É um espaço de contraponto. Seu compromisso não está vinculado aos ventos passageiros da política e dos partidarismos. Sua agenda deve ser determinada por valores perenes: liberdade, dignidade humana, respeito às minorias, promoção da livre-iniciativa, abertura ao contraditório. O jornalismo sustenta a democracia não com engajamentos espúrios, mas com a força informativa da reportagem e com o farol de uma opinião firme, mas equilibrada e magnânima. A reportagem é, sem dúvida, o coração da mídia.

O fenômeno da desintermediação dos meios tradicionais teve precedentes que poderiam ter sido evitados não fosse o distanciamento da imprensa dos seus leitores, sua dificuldade de entender o alcance das novas formas de consumo digital da informação e, em alguns casos, sua falta de isenção informativa e certa dose de intolerância.

Não podemos viver de costas para a sociedade real. Isso não significa ficar refém do pensamento da maioria. Mas o jornalismo, observador atento do cotidiano, não pode desconhecer e, mais que isso, confrontar permanentemente o sentir das suas audiências. A verdade, limpa e pura, é que frequentemente a população tem valores diferentes dos nossos.

A internet, o Facebook, o X (ex-Twitter) e todas as ferramentas que as tecnologias digitais despejam a cada momento sobre o universo das comunicações transformaram a política e mudaram o jornalismo. Queiramos ou não. Precisamos fazer a autocrítica sobre o nosso modo de operar.

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JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Opinião por Carlos Alberto Di Franco

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