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Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | A guerra na Ucrânia e o Brasil

Nesta matéria, cabe uma maior sintonia brasileira com a visão dos Estados Unidos e dos países europeus

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Em artigo anterior (20/11/2022), discutindo desafios com os quais terá de lidar a política externa da presidência Lula, destaquei que uma mudança significativa do cenário internacional está dada e configurada pela guerra na Ucrânia e seus desdobramentos.

Esta guerra vem sendo conduzida com determinação militar pela Rússia e resistida com valentia pela Ucrânia, com o apoio logístico dos europeus e dos EUA, e o complemento das sanções plurilaterais de natureza econômica de muito alcance que impuseram. Uma guerra como esta não se circunscreve ao âmbito dos Estados em que se abriu o conflito. Tem repercussão global, especialmente porque foi desencadeada pela deliberada unilateral agressão militar da Rússia, uma grande potência nuclear que é membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

Ela diz respeito a toda a comunidade internacional, inclusive o Brasil. Sua comoção e suas misérias fragilizam a Ucrânia. Seus estragos alcançam a todos, ainda que com vários graus de intensidade.

Putin recorreu a ela para alcançar finalidades políticas: 1) fulminar a independência política e a integridade territorial da Ucrânia para integrá-la num espaço vital russo; e 2) conter o que considera uma ameaça à segurança do seu país, proveniente da expansão geográfica da Otan no pós-guerra fria.

Vale ponderar que a guerra na Ucrânia tem uma de suas origens no colapso da União Soviética. Os países do leste europeu antes sob seu controle e domínio encontraram, com sua desagregação, um espaço próprio de liberdade e autonomia. A adesão da Europa Oriental à União Europeia ofereceu aos países desta região inéditas possibilidades de desenvolvimento. Neste contexto, o empenho em integrar-se na Otan de países como Bulgária, Polônia e os Estados bálticos não teve objetivos ofensivos. Buscavam um manto de segurança para protegê-los do risco do restabelecimento de uma arbitrária onipresente esfera de influência russa. Por isso, veem na agressão à Ucrânia um precedente ameaçador do espaço de sua liberdade internacional e de seus benefícios.

A visão de segurança da Rússia, expressa pela guerra na Ucrânia, sugere a pertinência da reflexão de Henry Kissinger sobre o concerto europeu no século 19. A segurança absoluta almejada por Napoleão gerou a insegurança absoluta dos demais europeus e comprometeu o potencial de estabilização do sistema internacional da época. Daí a ponderação kissingeriana de que uma ordem estável tem como pressuposto a segurança relativa e a insegurança relativa de todos, uma insegurança relativa que não comporta um questionamento global pela ascensão aos extremos de uma guerra.

A História ensina por analogia. Se Putin almejava uma finlandização, vale dizer, uma neutralização da Otan, o que logrou foi a incorporação da Suécia e da Finlândia – países anteriormente neutros – à Otan. Trouxe, ao mesmo tempo, o revigoramento da Otan pelos EUA e pelos europeus que passaram a nela identificar um indispensável ingrediente de dissuasão, em função das novas configurações da segurança internacional.

A ação de Putin rompeu inequivocamente com o padrão do aceitável. Inseriu a insegurança do imprevisível na dinâmica mundial. Magnificou tensões e incertezas com a generalizada repercussão de uma guerra que alcançou todas as instâncias das relações internacionais.

Cabe, assim, seguir a lição de Ruy Barbosa sobre a orientação pacificadora da justiça internacional. “Entre os que destroem a lei e os que a observam, não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade, quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o Direito e a injustiça.” Assim, quando entre ele e ela existem “normas escritas, que as definem e diferenciam” – como é hoje o que prescreve a Carta da ONU sobre a integridade territorial e a independência política de qualquer Estado –, pugnar pela sua observância “não é quebrar a neutralidade, é praticá-la”.

O Brasil é um país de escala continental. Integra o seu capital diplomático o viver em paz com seus dez vizinhos há 150 anos, com fronteiras juridicamente consolidadas e sem tensões de contenciosos territoriais. Contrasta com outros países dos Brics, como China, Índia e a própria Rússia, que, por terem contenciosos territoriais, têm sensibilidades distintas do Brasil.

Por isso o que quero, em conclusão, sublinhar é que nesta matéria cabe uma maior sintonia brasileira com a visão dos EUA e dos países europeus. Vale, evidentemente, reconhecer diferenças, derivadas da especificidade da inserção internacional do Brasil, e afirmar ao mesmo tempo a importância do Atlântico Sul como uma zona de paz e segurança e de não proliferação nuclear. É importante, também, levar em conta uma reciprocidade difusa de afinidades. Entre elas, a ênfase compartilhada na agenda ambiental e o reconhecimento de que foram os americanos e os europeus que mais se destacaram no plano internacional na defesa da legitimidade do processo eleitoral e do respeito ao Estado de Direito que salvaguardaram o triunfo eleitoral de Lula.

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PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP, FOI MINISTRO DE RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

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