José Gregori acaba de nos deixar, aos 92 anos, cercado do afeto de suas filhas e da solidariedade dos amigos. Expressou com espírito público, nos caminhos de sua vida, a sensibilidade, compartilhada de sua geração de brasileiros em relação aos problemas e desafios do nosso país. Para José Gregori, na especificidade deste contexto, o melhor e mais relevante sonho que alimentou a sua vida foi o da afirmação e da efetivação da constitutiva complementaridade da democracia e dos direitos humanos sob a égide e as normas de um Estado de Direito.
Foi à realização do potencial do dever ser deste sonho, e também ao enfrentamento dos seus obstáculos, que se dedicou no seu percurso. Esta é a marca de sua contínua e ativa presença no espaço público da palavra e da ação. Assumiu a força axiológica da democracia, que traduziu na sua prática e na civilidade pluralista de sua conduta, aberta ao diálogo criativo da diversidade.
Valeu-se dos modos de ser de sua personalidade para enfrentar e conter no âmbito da sociedade, com firmeza ética e coragem, o arbítrio do regime autoritário de 1964. Contribuiu, na sequência, para os movimentos de redemocratização do País. Valeu-se das suas qualidades para, pelo diálogo, agregar forças e vontades para construir soluções democráticas nos períodos subsequentes da plenitude do Estado de Direito.
Relembro seu papel como chefe de gabinete do ministro da Economia Marcílio Marques Moreira na crise política do governo Collor que levou ao impeachment do presidente. O talento político de Gregori foi um ativo para Marcílio tecer o compromisso de governabilidade dos integrantes do Ministério. O compromisso foi um polo de racionalidade e democracia que ajudou o bem-sucedido desfecho institucional da crise, que pôs à prova a Constituição de 1988.
Na presidência de Fernando Henrique Cardoso, de quem foi ministro da Justiça e embaixador em Portugal, deu efetivo andamento à agenda dos direitos humanos. Teve grande papel na elaboração e execução da Lei dos Desaparecidos Políticos. Destacou-se na elaboração e subsequente implantação do Plano Nacional dos Direitos Humanos, do qual foi o primeiro titular. A elaboração do plano resultou de abrangente interlocução e participação da sociedade civil e trouxe significativa interlocução nas instâncias internacionais do Brasil em matéria de direitos humanos, com positiva mudança da política jurídica exterior do País.
Estas foram iniciativas e conquistas civilizatórias da democracia que José Gregori empreendeu, com pleno respaldo de FHC. Tiveram duradouro impacto nos governos subsequentes, exceção feita à contenção patrocinada pelo parênteses obscuracionista e autoritário do governo Bolsonaro.
Em 2009, José Gregori publicou sua autobiografia, Os sonhos que alimentam a vida. No livro, empenhou-se num ajuste de contas com o significado de sua vida e dos seus imprevistos e dificuldades. Tratou de sua formação, sua família, da parceria de vida e valores do seu casamento com Maria Helena, das experiências e situações que o marcaram. O tempo da memória da sua autobiografia está permeado pela interpretação dos fatos que viveu em diversas circunstâncias, dos amigos e das grandes figuras com as quais conviveu e interagiu.
Prefaciei a autobiografia de José Gregori como seu amigo de décadas e companheiro de batalhas em prol da democracia e dos direitos humanos, em plena sintonia com os valores que defendeu, afetuosa compreensão pelas suas atividades e grande gosto pelos seus dotes que emergiam no cotidiano das conversas. Conversas que moviam a empatia dos seus muitos e mais diversos interlocutores. Entre eles, os seus confrades da Academia Paulista de Letras.
Os sonhos que alimentam a vida tem um entorno definidor: o Brasil, sua sociedade, cultura, e instituições na perspectiva organizadora da sensibilidade vital de sua geração. Tem como ótica especificadora uma pessoa que sentiu desde jovem a atração pela política.
Nesse sentido, a política estudantil, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o XI de Agosto da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo foram para ele, como para tantas outras gerações, uma escola de cidadania. A sua casa, aliás, veio a ser, na dinâmica plural dos seus encontros, uma versão atualizada do pátio da Faculdade. Foi, como observou por analogia Paulo Sérgio Pinheiro, um pique para adultos se encontrarem e se entenderem sobre a agenda de desafios éticos da res publica.
No Largo de São Francisco, José Gregori exercitou os seus dotes de grande orador, manifestou a sua capacidade de articulador de entendimentos políticos e fez suas primeiras defesas do papel da democracia e dos direitos humanos. Como diz Políbio: o começo é mais da metade e alcança o fim.
“Um galo sozinho não tece uma manhã.” Precisará sempre de outros galos que acompanhem o seu grito e o lancem a muitos outros que se cruzem para tecer uma teia tênue onde entrem todos, diz o poema de João Cabral de Melo Neto.
Foi essa a lição de José Gregori na constante tessitura da teia tênue, sempre válida e sempre esquiva da democracia e dos direitos humanos.
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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DE RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)
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