O presidente Lula da Silva embargou a compra de equipamentos de empresa israelense que se sagrou vitoriosa numa rigorosa licitação do Ministério da Defesa. A licitação definiu a proposta da empresa israelense como a mais vantajosa para o interesse público do necessário reaparelhamento das Forças Armadas – no caso, a importação de 36 blindados. Tem fundamento jurídico a decisão do embargo imposta pelo presidente?
Na sua deliberação, o presidente considerou imprópria a importação de material bélico de Israel, entendendo que não cabia um relacionamento comercial do Brasil com um país em guerra no Oriente Médio. Trata-se de uma alegação que não tem base nos princípios que disciplinam a administração pública brasileira, nem nas específicas normas vigentes relacionadas à aquisição pelo nosso país de produtos ou sistemas de defesa. Também não encontra respaldo nos princípios que regem as relações internacionais do Brasil nem nos compromissos internacionais assinados pelo País.
No âmbito da administração pública, não cabe vontade pessoal. Só é lícito, num Estado de Direito, fazer o que a lei autoriza. Esse é o significado do princípio da legalidade, que é um dos princípios que constitucionalmente regem a administração pública em nosso país, esclarecedor de que o ato decisório deve ser praticado para seu fim legal, que é inafastável do interesse público. O ato decisório do presidente não cumpre esse requisito. Não atende também a princípios da administração pública que a licitação do Ministério da Defesa contemplou: a impessoalidade, a eficiência e a moralidade.
A impessoalidade pressupõe a objetividade na avaliação. A eficiência, o melhor emprego dos recursos e meios para atender às necessidades coletivas, no caso, a relevância de dotar as Forças Armadas dos melhores meios para atender a sua finalidade de defesa do País. A moralidade administrativa, por sua vez, consiste no conjunto de regras de condutas, extraídas da disciplina prevalecente no interior da administração, o que significa, conjugando-a com a impessoalidade, que a ação administrativa não pode ter o intuito de prejudicar ou favorecer alguns.
O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, atento ao interesse nacional de reaparelhamento das Forças Armadas e à luz da posição do presidente Lula, consultou o Tribunal de Contas sobre a matéria. O Ministério da Defesa fundamentou circunstanciadamente o processo decisório da licitação que levou à indicação da empresa israelense e às razões de sua contratação.
O Tribunal de Contas debruçou-se sobre a questão, que tem como cerne esclarecer se para fornecedores com vínculos com países em situação de conflito armado existe a possibilidade de restringir a participação em licitação ou impedir a celebração de contratos indicados no processo licitatório. Ponderou que não cabe uma restrição desse tipo, almejada pelo presidente Lula. Não se justifica pelos princípios de defesa da paz e da solução pacífica de conflito porque não tem impacto externo. Não tem como base exceções decorrentes da violação de obrigações provenientes de sanções adotadas pelo Conselho de Segurança. Concluiu com base no voto do ministro Antonio Anastasia, respaldado pelos ministros da corte em 18/9/2024, que não cabia o embargo preconizado pelo presidente Lula.
Concluo assim do acima exposto que a decisão do presidente Lula é uma sanção discriminatória que não se amolda aos princípios norteadores das relações internacionais e da administração pública do País. Não segue a coerência da internalização de sanções multilaterais que caracterizam a política jurídica exterior do Brasil. É um unilateralismo que comporta semelhança com o embargo que os EUA impõem a Cuba, que vem sendo criticado no correr dos tempos, com razão, pela política externa brasileira.
A decisão do presidente Lula fere o princípio de igualdade entre os Estados contemplados na Constituição. Desconsidera não só a conveniência, mas também a oportunidade da administração pública brasileira de aprimorar pela zelosa ação do Ministério da Defesa a qualidade do equipamento das Forças Armadas.
É um desvio de finalidade pois pratica um ato sem qualquer fundamento no Direito brasileiro aplicável à matéria de licitação, para atingir uma finalidade política inspirada por seu voluntarismo pessoal.
Transpõe para o plano interno do País um prejuízo para a atuação responsável do Ministério da Defesa, no exercício de suas funções. É uma equivocada avaliação diplomática do interesse nacional, fruto de uma opacidade intencional de sua política externa, animada por um ímpeto de depreciar Israel no cenário geopolítico das paixões e tensões da vida internacional.
É um exemplo de deslizamento conceitual jurídico da sua responsabilidade institucional de manter relações com Estados estrangeiros. Traduz um desnorteamento da diplomacia brasileira que só responde nessa matéria a um boicote a Israel preconizado por plúmbeos segmentos ideológicos do PT – que não representam o todo da sociedade brasileira.
*
PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.