EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Rui Barbosa, no centenário do seu falecimento

A República lhe deu espaço público para, como jurista, senador e em duas campanhas presidenciais, defender a verdade eleitoral, enfrentar a questão social e sustentar o civilismo

Foto do author Celso Lafer

Há cem anos falecia Rui Barbosa. Merece destaque a atualidade de seu legado, que se notabiliza por um fio condutor: “a formação da esfera pública e a construção institucional da democracia no Brasil”, como certeiramente realçou Bolívar Lamounier.

A Oração aos Moços foi seu discurso de paraninfo da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde se formou. Foi o seu balanço de 50 anos de trabalho na jurisprudência e de serviços à Nação. Enfatizou que não atuou como “político fértil em meios e manhas”. Empenhou-se em “inculcar ao povo os costumes de liberdade e à República as leis do bom governo”, que fazem prosperar os Estados, moralizar a sociedade e honrar as nações.

Rui é um paradigma da atuação dos advogados que souberam valer-se do Direito como instrumento da ação política, como observou Afonso Arinos. Na sua práxis, viveu o Direito não como abstração, mas em função do agir. A autonomia de jurista em relação ao poder é um traço marcante da personalidade de Rui, que não colocou o seu saber para acomodar impulsos arbitrários do pragmatismo de governantes ou justificativas de “razão de estado”.

No início da sua caminhada, teve ativa participação, em parceria com Joaquim Nabuco, na campanha abolicionista. Fulminou “a legalidade caduca do cativeiro”. Realçou que a questão da escravidão era a questão das questões, a que todas as outras se subordinavam, pois “encarna em si o começo da solução de todas as demais”. Certeira colocação ainda pendente de encaminhamento, pois a herança da escravidão persiste com a agenda do racismo estrutural.

Lembro os inovadores pareceres sobre o ensino, apresentados na Câmara dos Deputados do Império. Lastreiam-se no papel da educação para o desenvolvimento material e moral do nosso país e dão ênfase à ciência e ao método experimental.

Foi a República que deu a Rui espaço público para, como jurista, senador e nas suas duas campanhas presidenciais, defender a verdade eleitoral, enfrentar a questão social e sustentar o civilismo: “Civilismo quer dizer ordem civil, ordem jurídica, a saber: governo das leis contraposto ao governo de arbítrio, ao governo da força, ao governo da espada”.

O papel de Rui na feitura da Constituição de 1891 é parte dos seus grandes serviços à Nação. A ele se deve o federalismo, que contrapôs à monarquia unitária e centralizadora.

Devem-se a Rui a criação do Supremo Tribunal Federal e seu papel de guarda da Constituição, com a sustentação de seu “direito-dever” de conter atos usurpatórios do governo e do Congresso mediante a afirmação da “lei das leis”, que está acima da legislação ordinária.

Rui promoveu a separação da Igreja do Estado e a laicidade consagrada na Constituição de 1891 e nas subsequentes. A laicidade significa que o Estado se dessolidariza de toda e qualquer religião, em função de um muro de separação entre o que cabe a ele e o que cabe à sociedade civil como esfera autônoma para o exercício da liberdade religiosa e de consciência. Num Estado laico, as normas religiosas são conselhos e orientações no âmbito da sociedade civil aos fiéis, e não comandos para toda a sociedade.

Rui, na Oração aos Moços, englobou na missão do advogado a magistratura de uma justiça militante. Protótipo do exercício desta missão foi a pioneira defesa, em 1985, da inocência de Dreyfus, um grande exemplo na França de quebra da “verdade ante o poder”, com a flagrante denegação da justiça, por meio de um processo operado no segredo de um tribunal militar. Entreviu que a verdadeira causa de condenação de Dreyfus foi o antissemitismo, que na França daquele momento vivia “o espasmo do ódio insaciável”.

O texto de Rui foi escrito na Inglaterra, publicado no Brasil e data de seu período de exílio, a que se viu forçado pelo arbítrio da presidência Floriano Peixoto. Foi, depois, vertido para o francês e circulou na Europa.

Baptista Pereira, seu genro e próximo colaborador, identificou no texto de Rui “uma autópsia de militarismo”, válido para o Brasil de Floriano, que postergou na experiência de vida de Rui a vigência das garantias legais, às quais se dedicou na implantação da República, almejando a construção institucional da democracia em nosso país.

O texto de Rui sobre Dreyfus corrobora a defesa que fez em 1920 sobre o dever da verdade – nos debates, nos atos, no governo, na tribuna, na imprensa – e da transparência do espaço público, pois “o poder não é um antro, é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça”. Daí a inaceitabilidade da falsificação e da mentira nas instituições. Desnecessário destacar a vigência da sua mensagem.

Em 1949 Oswald de Andrade sublinhou que Rui tinha a capacidade do sacrifício e sempre soube perder. Por isso, “como a semente do Evangelho que precisa morrer para frutificar, ele sempre soube morrer pelo dia seguinte do Brasil”. A árvore da liberdade e a construção institucional da democracia estão subjacentes à atualidade do seu legado.

*

PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.