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Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Sobre o percurso de Marcílio Marques Moreira

O leitor de seu livro muito apreciará saber como a ‘auctoritas’ de sua presença infundiu racionalidade na condução da economia e da política em momentos difíceis

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Em De Senectute, livro que recolhe seus textos autobiográficos, Norberto Bobbio reflete sobre o passado como o tempo da memória. Nele, realça a importância do repertório da memória como uma grande fonte de indagação sobre nós mesmos, o mundo em que vivemos, as pessoas e os acontecimentos que atraíram e mobilizaram nossa atenção.

O livro de Marcílio Marques Moreira – O Social como Elixir – tem a unidade própria que é dada pelas características de uma narrativa organizada que se desdobra no tempo da memória. É o que confere ao seu percurso uma dimensão esclarecedora dos seus caminhos e de sua identidade de intelectual e homem público.

É nessa moldura que está a chave da compreensão do enredo do livro que será lançado no Rio na semana que vem. Foi elaborado numa límpida prosa. É composto por recortes abrangentes de uma longa vida. Esses recortes avivam o significado do ambiente da família na qual foi criado, da sua educação e formação, dos seus subsequentes caminhos profissionais, assim como a importância do circuito instigador das pessoas com quem conviveu e o influenciaram, que, em conjunto, são as fontes da construção da sua personalidade.

Nesse âmbito avulta a figura luminosa de San Tiago Dantas, com o qual trabalhou e teve como jovem a proximidade de uma frutífera convivência. Ao legado de San Tiago, como ministro da Fazenda, chanceler, homem público e intelectual, Marcílio se dedicou a explicitar. Foi uma lição importante de vida.

Inspirado pela lição de San Tiago, foi recorrente a preocupação de Marcílio com a trama dos problemas e dos debates da sociedade brasileira no longo arco de seu percurso. É o que explica por que os recortes abrangentes de seu livro dão ênfase aos momentos importantes da vida brasileira que acompanhou de perto.

Nessa matéria cabe destacar a qualidade analítica com a qual recorda o papel do primeiro plano que teve na democracia depois do término do regime militar, como embaixador em Washington (1986-1991) e ministro da Economia, Fazenda e Planejamento (maio de 1991 a outubro de 1992). Essas duas convergentes experiências são pontos culminantes de sua vida pública. O leitor de seu livro muito apreciará saber como a auctoritas de sua presença infundiu, para o bem do País, racionalidade na condução da economia e da política em momentos difíceis e problemáticos.

Destaco a sua contribuição à governança e à governabilidade do País. Assinalo a qualidade da equipe que soube mobilizar e conduzir como ministro da Economia para conferir sentido de direção à sua gestão. Desdobrou-se com amplitude na articulação que levou ao “Ministério dos notáveis”. Este conferiu lastro de credibilidade e sustentabilidade à fragilidade política da última fase do governo Collor, permitindo levar adiante o rumo modernizante das reformas estruturais liberalizantes.

A credibilidade da ação do Ministério logrou criar uma instância de poder – o gabinete que ele liderou. O gabinete, diante da gravidade da crise, encontrou suficiente autonomia e crédito político, num sistema presidencialista, para gerenciar o cotidiano do País e sustar os riscos da paralisia decisória.

Como amigo de Marcílio de toda a vida, parceiro de muitas das suas empreitadas e seu companheiro de Ministério, para o qual fui guindado por sua iniciativa, posso dar meu testemunho sobre a qualificada dimensão esclarecedora de sua narrativa.

Guimarães Rosa observou que “toda ação principia mesmo por uma palavra pensada”. O livro de Marcílio é também uma autobiografia intelectual, pois vai explicitando na sua narrativa como foi elaborando as matrizes do pensamento que guiaram a sua ação e os seus caminhos. Nessa elaboração estão subjacentes a abrangência da cultura, conjugada com o saber de sua experiência diplomática e no setor privado. Estão sempre presentes a reflexão sobre ética e poder e a convicção norteadora de liberdade e a rejeição das prepotências totalitárias.

Marcílio articula, no pluralismo das vertentes das concepções liberais, um liberalismo de abertura econômica e política, de empenho e preocupação social, com atenção para o meio ambiente e a sua sustentabilidade. É um liberalismo permeado pela afirmação da democracia e dos direitos humanos, como forma superior de convivência coletiva e pelos méritos do papel da razão na condução da economia e da política.

Maurice Hauriou, o jurista francês que Marcílio qualificou como um construtivista “avant la lettre”, destacou o papel decisivo da “ideia a realizar” na dinâmica de uma organização. Marcílio amplia a “ideia a realizar” para a vida de um país e de uma sociedade, com destaque para a credibilidade de suas instituições. Essa é a lição e o legado de sua atuação, empreendida com firmeza e coerência e sustentada pela serenidade de um catolicismo “aggiornato” que ensejou sua acquiescentia in se ipso spinozana, que é uma marca de sua identidade.

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PROFESSOR EMÉRITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

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