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Chegou o pós-Mandela

Partido de Nelson Mandela sofre derrota inédita em 30 anos e terá de fazer concessões

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Por Notas & Informações
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Após liderar o fim do apartheid, conduzir a transição democrática e governar a África do Sul por 30 anos, o partido de Nelson Mandela, o Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês), sofreu um choque de realidade. Na sétima eleição desde a democratização, perdeu pela primeira vez a maioria: os votos despencaram de 57%, em 2019, para 40%. O ANC ainda é o maior partido, mas precisará de coalizões para governar. Suas escolhas determinarão o destino do país por muito tempo.

A primeira parte da missão do ANC foi cumprida com relativo sucesso. Nos anos 90, ele evitou a guerra civil. Até 2009, a economia cresceu em média 3,3% ao ano. Direitos socioeconômicos foram estendidos. Liberdades fundamentais foram consolidadas. As eleições são livres, justas e competitivas. Sua hegemonia nacional não se traduziu em repressão aos partidos de oposição, que conquistaram governos nas províncias. Apesar da humilhação nas urnas agora, o ANC não contestou os resultados.

Mas o partido não conseguiu evitar a trajetória de degradação comum aos movimentos de liberação. O poder corrompe, e o poder longo corrompe longamente. No governo de Jacob Zuma (2009-2018), cargos foram distribuídos não por mérito, mas lealdade, a governança foi depredada, a corrupção se proliferou e a economia se estagnou. O atual presidente, Cyril Ramaphosa, tentou conter a hemorragia com reformas sensatas, mas pouco profundas. Muitos sul-africanos estão frustrados com a democracia e creem que ela apenas acoplou às elites brancas as elites negras, relegando o resto à pobreza.

Uma das opções do ANC é se aliar a dissidentes radicais, como o novo partido de Zuma, uMkhonto we Sizwe (MK, 14,6% dos votos), ou os revolucionários socialistas Combatentes da Liberdade Econômica (EFF, 9,5%). O primeiro quer abolir o sistema judicial “ocidental” e reescrever a Constituição para dar mais poder a chefes regionais. O segundo tem uma plataforma radical de desapropriação e estatização. Nesse cenário, o país entrará em processo acelerado de “venezuelização”.

A alternativa envolve compromissos com o partido centrista de oposição, a Aliança Democrática (DA, 22% dos votos). A DA é favorável ao livre mercado e governa com sucesso suas províncias, mas é vista com desconfiança como o partido “dos brancos”. O ANC teria de ceder à DA a presidência do Parlamento. O controle da pauta legislativa daria à DA uma oportunidade de implementar seus padrões de governança. Mas, se quiser vencer seu teto de votos, terá de incluir mais lideranças negras. Ambos correriam riscos de perder apoio de suas alas radicais. Mas, para o bem do país, as perdas podem ser compensadas com um governo de unidade nacional, que reúna partidos menores, exceto o MK e o EFF.

O segundo capítulo da África do Sul pós-apartheid, o pós-Mandela, está começando. É um momento de enorme perigo, mas também de oportunidades. O ANC salvou a África do Sul da destruição e pode salvá-la de novo. Para isso, precisa salvar a si mesmo, renunciando ao canto da sereia dos radicais e fazendo concessões ao centro.

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