Pensemos em alguém que planta e vende alpiste. Não tem muita satisfação a dar ao governo. Porém, áreas como educação superior são hiper-reguladas. Não se dá um passo sem trombar com alguma regra, em geral, bizantina. Ou pior, muitas delas são equivocadas.
O caso é real. Médicos recém-aposentados da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) resolveram criar uma escola de Medicina. Nem pensar! Segundo o Ministério da Educação (MEC), em Belo Horizonte, o mercado para médicos está saturado. Contornaram o escolho legal, abrindo em cidade próxima.
Se a ideia era “interiorizar” o ensino, fracasso total. Todas as manhãs, saem de Belo Horizonte os professores e os alunos. E os graduados se empregam onde moram. Ou seja, a saturação só existe na cabeça dos doutos do MEC.
Será que o MEC ouviu falar de “economias de aglomeração”? Berlim, pouco maior que BH, tem 80 hospitais, Nova York, 50. A concorrência melhora o serviço e a densidade de talentos transborda no ensino.
Sendo público, o ensino tem que se pautar por prioridades sociais e bom uso dos recursos. Mas isso não acontece, pois as universidades têm “autonomia” – o que quer que isso signifique.
Mas aqui discutimos o setor privado. Rigorosamente, a escola deve respeitar a legislação. E, óbvio, tem que pensar na viabilidade econômica do empreendimento. Não cabe ao MEC protegê-la. Se investir em um “mercado saturado”, problema dela. Aliás, será que o funcionário do MEC sabe mais de mercado do que alguém disposto a arriscar seu capital?
“O ensino está péssimo, há que proibir a abertura de mais faculdades!”, berram dois grupos, bizarramente afinados. Berram os donos de faculdades já instaladas, pois, como disse Adam Smith, capitalista odeia concorrência. E urra a esquerda bocó, achando que com isso vai punir os “tubarões do ensino”. Na verdade, impedir novas escolas aumenta o lucro dos donos das faculdades existentes.
É pior. Como o MEC apenas fecha a torneira das autorizações, as faculdades fracas ou escandalosamente fracas continuam operando. Sugere a razão: se o ensino está fraco, a solução não é proibir a abertura de novas faculdades. De resto, os números do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) não confirmam que as faculdades recém-abertas sejam piores do que as existentes há mais tempo. A única solução é dar um jeito nas ruins, exigindo consertos e punindo os refratários. Um tal de Flexner, lá por 1910, produziu um relatório que levou ao fechamento de quase metade das escolas de Medicina dos Estados Unidos. Isso sim é lidar com má qualidade!
Mas quais fechar e quais aplaudir? No fundo, o epicentro da questão é entender o papel do Estado. O primeiro critério é deixar ao mercado o que é assunto dele. Se alguém compra alpiste de terceira qualidade para o seu curió, isso não é assunto para o Estado.
Mas qual o limiar de qualidade aceitável para cursos superiores? Para esse dilema crítico, não há respostas simples ou únicas.
Um papel óbvio do Estado é não deixar que se compre gato por lebre, impedindo a propaganda enganosa. Enem e Enade fazem isso (palmas para o MEC). Que seja de conhecimento público quanto aprendem os alunos e a qualidade do ensino oferecido.
Merecem regras mais restritivas as áreas prenhes de riscos, como Medicina ou Enfermagem. Nesses casos, cumpre ao MEC levantar a barra da qualidade e impedir que alguém passe por baixo dela. Seria o mesmo com Direito. Porém, o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) elimina quem não atingiu um nível mínimo para o exercício da profissão. Basta isso.
E as outras áreas? Nelas, de acordo com o curso, o MEC deveria estabelecer limiares de competência dos graduados. E isso ele não faz. E poderia até premiar quem galga níveis melhores.
Mas o que será essa tão fugidia “qualidade” do ensino? Podemos pensar em três medidas. A primeira, a mais robusta, é algo na linha do Enade, medindo o tanto que o aluno aprendeu. A segunda é o seu sucesso no mercado de trabalho. É uma informação crítica para a negociação entre alunos e escolas. Como no alpiste, não é território onde o Estado deva se meter. A terceira são as notas do MEC, atribuídas ao verificar uma infindável coleção de diplomas, papéis, penduricalhos e detalhes dos prédios.
No celebrado e temido Guia Michelin, seus visitadores jamais perguntariam a marca do fogão ou se facas estão afiadas. Ou se o exaustor foi bem instalado. Ou se o cozinheiro faz serviço comunitário. Apenas provam a comida e concedem suas estrelas. Avaliam o resultado e ignoram o processo.
Alguma lição para o MEC?
Com efeito, a nota do MEC não capta os resultados – como fazem os provadores do Michelin. Não captura o quanto foi aprendido, apenas mede os insumos. Isso até pode ser uma informação útil. Porém, a lista do MEC vira o deus ex machina da avaliação. Há até consultores especializados em achar ínfimos detalhes faltantes. No lado do folclore, a Engenharia do Insper não foi autorizada porque o mezanino da biblioteca não permitia cadeirantes. E o que é pior, valoriza atributos errados. Por exemplo, premia Ph.Ds e tempo integral dos professores da graduação, cujo impacto se revela nulo. E nos cursos profissionais, penaliza a presença de quem tem experiência prática, mas não tem todos os diplomas.
É inevitável: lei ruim, resultado ruim.
*
PH.D., CONSULTOR INDEPENDENTE, É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.