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Pesquisador em Educação e doutor em Economia pela Universidade Vanderbilt (EUA), Claudio de Moura e Castro escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | ‘Oba, hoje é dia de shopping center!’

Por que a nossa esquerda se recusa a aplaudir o Senai, diante de uma sociedade chafurdada na desigualdade?

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Essa frase foi ouvida pela coordenadora de uma escola do Senai, em Diadema. Era de um desses alunos que frequentam o ensino médio em uma escola pública e fazem a vertente profissional na escola do Senai. Traduzindo, para alunos como ele, o paroxismo do luxo é um shopping center. E ir para a aula no Senai é passar da sua modestíssima escola para uma de sonho, de luxo.

Em países com o Brasil, observa-se uma associação persistente e maldita. Rico estuda em escola de rico. Pobre estuda em escola de pobre. As dos ricos têm prédios melhores, professores mais bem selecionados e uma infinidade de outras vantagens. E as dos pobres têm prédios mais sofridos, professores pouco inspirados e equipamentos piores. Quando olhamos os custos, as diferenças são marcantes.

Nos Estados Unidos, onde as escolas são financiadas por impostos locais, as cidades mais pobres têm menos recursos para a educação. Essas ubíquas diferenças geram resultados escolares muito diferentes, para ricos e para pobres.

Porém, o Sistema S ficou na contramão dessa decalagem entre escolas de pobres e de ricos. Oferece aos mas pobres as únicas redes com padrão de “escola de rico”. É um ponto muito fora da curva.

Vale a pena seguir o fio da meada. Em meio à industrialização crescente de São Paulo, pouco ou nada havia de formação profissional. Percebendo a penúria, industriais paulistas convenceram Getúlio Vargas a criar um sistema, pioneiro no mundo. Seria privado, operado pelas federações de indústrias e financiado por um tributo sobre a folha de salários. Grandes novidades!

Mas, se não havia escolas desse tipo, tampouco havia modelos de como operá-las. Um círculo vicioso. Por coincidências felizes, apareceu uma solução.

Um certo moço, nascido e criado no coração da relojoaria suíça, faz a sua formação técnica e prossegue seus estudos, matriculando-se no Tecnológico de Zurique – uma das melhores escolas de Engenharia do mundo. Antonio Francisco de Paula Souza, professor da Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), recebe a incumbência de buscar na Europa um professor de mecânica para sua escola. Encontra um engenheiro mecânico que falava português! Filho de um negociante de relógios, havia passado alguns anos em Portugal, pois o pai lá representava os relógios suíços.

Veio para o Brasil Roberto Mange. Anos depois, é convidado para criar um centro de treinamento na ferrovia sorocabana. Tinha a excelência de um graduado de Zurique e adquiriu a experiência de formar aprendizes.

Era a escolha óbvia para criar e pôr em marcha o recém-criado Senai-SP. Aflora nos centros de formação, criados por ele, toda a carga cultural da mecânica de precisão suíça. Era rígido, ao extremo, perfeccionista e imbuído dos valores de profissionalismo de sua origem. Até os filhos o viam como exigente e rigoroso. Quando visitava oficinas, até ensinava a maneira correta de varrer o chão. A primeira escola, a Roberto Simonsen, tinha os escritórios nos fundos e as oficinas na frente, com grandes janelas para que o público admirasse o que acontecia lá dentro.

Em uma escola do ABC, seu diretor me acompanhava, na visita a uma gigantesca sala, com mais de cem tornos. Subitamente, exclama: “Porcos! Imundos! Fazemos tudo, mas não adianta!”. Abaixa-se e recolhe uma única rebarba, menor que um palito de fósforo. Teatro para o visitante? Com certeza, mas, igualmente, revela o espírito da casa.

Em Mannheim, ministrava eu um curso para dirigentes latino-americanos de centros de formação. Dentre os participantes, havia um de Pernambuco, cuja origem era administrativa. Quando mencionei o fanatismo de Mange por limpeza nas oficinas, não se conteve. Agora entendia seus instrutores, obcecados pela mania invencível de esfregar chãos e máquinas. Mas, que fique claro, não é só limpeza. Nos últimos anos, o Senai está entre os cinco primeiros colocados no certame internacional de ofícios, o WorldSkills. Ganhou primeiro lugar uma vez.

Visitando escolas do Senai, recentemente, vi que a herança de Mange ainda está viva. A oficina de mecânica de automóveis tem o seu piso pintado de branco. A gigantesca sala da tornearia tem tacos encerados. E os banheiros são imaculados. O Senai soube manter as tradições da boa formação europeia. E através de inúmeras pesquisas, inclusive as feitas por mim, sabemos que transforma a vida de seus graduados. E não são poucos. No presente ano, estima-se em mais de 1 milhão as matrículas, oferecidas por 92 escolas fixas e 78 unidades móveis (convenientes para cidades pequenas).

Voltando ao tema inicial, por um bom número de razões, suas escolas são como as de ricos, apesar de atenderem a uma clientela de origem muito modesta. Igual se pode dizer do Senac. O seu Centro Universitário paulistano não faria feio em um Estado próspero como a Califórnia.

Os nossos jovens, de origem modesta, quase sempre, frequentam escolas lastimáveis. Apenas no Sistema S têm a chance de “ir ao shopping center”. Historicamente, o pensamento de esquerda se preocupa com a pobreza, é o seu tema de origem. E Antonio Gramsci até fala na diferença entre escolas de ricos e de pobres. Então por que a nossa esquerda se recusa a aplaudir o Senai, diante de uma sociedade chafurdada na desigualdade?

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PH.D., CONSULTOR INDEPENDENTE, É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO

Opinião por Claudio de Moura Castro

Pesquisador em Educação e doutor em Economia pela Universidade Vanderbilt (EUA), Claudio de Moura e Castro escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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