Parece muito claro, em cada ano letivo, há um tanto a ser aprendido. Quem conseguiu passa para o ano seguinte, para aprender novos assuntos. Quem não conseguiu deve tentar de novo. Para isso, deve repetir o ano. É o único caminho para aprender o que deveria. A lógica é cristalina.
Pois não é que apareceu uma tal de “progressão automática”? Nela, quem não aprendeu, ainda assim, passa de ano. Contraria o bom senso.
A confusão criada por essa regra é antiga dentre nós. Porém, um artigo recente mostra que, nos Estados Unidos, as mesmas controvérsias estão pipocando (Why holding kids back fails − and what to do about it, The Conversation). Alguns Estados reprovam, outros não. O artigo mostra pesquisas rigorosas, comparando o impacto de uma com a outra alternativa. Vale notar, os resultados são equivalentes aos já encontrados pelo mundo afora, desde décadas atrás. Ou seja, poucas novidades.
Antes de entrar no assunto, uma notinha sobre o método científico. Nele, começamos por formular algumas hipóteses ou teorias. Por exemplo, a promoção automática é prejudicial aos alunos. Porém, manda a ciência, chega a hora de verificar se a hipótese descreve o mundo real. E aqui emerge o imperativo metodológico: se a realidade é diferente, lixo com a teoria! Se não há imperfeições nos métodos usados, somos obrigados a rejeitar nossa bela explicação.
Basicamente, a nova revisão da literatura técnica mostrou, novamente, que promover quem não sabe é melhor do que fazê-lo repetir o ano. Poderíamos parar por aqui, pois se a conclusão é essa, temos que aceitá-la.
Mas ajuda tentar entender o porquê. Ficou demonstrado, os repetentes têm desempenho pior do que se fossem aprovados sem saber. Ao se depararem com as mesmas aulas, terão os mesmos resultados negativos. Ademais, a repetência chamusca sua autoestima e aumenta o seu grau de ansiedade. Pior, nos Estados Unidos, acirra a desigualdade racial. E, obviamente, aumenta os custos da educação pública.
Diante disso, no ensino básico, a melhor solução é manter a promoção automática e, ao mesmo tempo, identificar precocemente os alunos que, durante o ano, vão ficando para trás. Para eles, cumpre oferecer auxílio suplementar, para que não se distanciem dos colegas, ao longo do mesmo ano.
O interesse desse artigo é sua total aplicabilidade no Brasil. Estivemos e estamos diante do mesmo quadro. Onde a repetência é permitida, esses alunos se separam de seus colegas e amigos, virando penetras, em turmas mais jovens. Ficam frustrados. Não têm paciência para enfrentar as mesmas aulas que não haviam entendido antes. Assim, aprendem menos do que se estivessem na série seguinte. Note-se bem, isso não é divagação ou especulação, é o que mostram pesquisas confiáveis.
O caso brasileiro merece alguns comentários adicionais. Seja nas mesas de bar, seja nos eventos mais sérios, se faz presente a mesma choradeira contra a progressão automática.
Os pais se queixam de que, com ela, se eliminam os incentivos para estudar mais. Ficou mais difícil para eles forçar os pimpolhos a mergulharem nos livros, já que não vão ser reprovados. De fato, esse parece um argumento imbatível.
Porém, não podemos ignorar uma diferença fundamental. Quem se queixa são os pais de classe média e alta, mais conscientes de seu papel de assegurar uma boa educação para seus filhos.
No fundo, não é que a repetência seja saudável para eles. Quem faz a mágica é o medo da repetência. Esse sim é um santo remédio para esses jovens. Como temem a ira paterna e as terríveis punições pairando no ar, tratam de não levar bomba. Ou seja, o temor da reprovação é um acicate poderoso para estudar mais. E, com efeito, quase todos conseguem escapar dela.
É totalmente distinto o caso das famílias mais pobres – muito mais numerosas que as ricas. Em geral, acreditam que repetir é melhor, é uma nova chance de aprender. Erradamente, nem pressionam os filhos para estudar mais e nem defendem a progressão automática – como deveriam, se entendessem do assunto. Repetir é a vida, é o destino.
É lamentável a incapacidade da nossa escola para lidar com os muitos que vão ficando para trás. Mas, como amplamente demonstram as pesquisas, se os mais pobres são reprovados, sairão perdendo.
Insistindo, no ensino fundamental, uma política que admite a reprovação é a alternativa mais nociva. Atrapalha um pouquinho as famílias de classe média, que perdem uma excelente ferramenta, chamada de “medo da repetência”. Mas pune, cruelmente, a maioria mais pobre, para quem a reprovação e repetência levam a resultados bem piores.
Como dito, a melhor solução é aquela já mencionada. Nada de repetência, mas uma identificação precoce daqueles que vão ficando para trás, seguida de apoio firme e eficaz para eles. Não há grandes mistérios para implementar essa assistência seletiva. Aos que dizem que aumenta os custos, de fato, isso acontece. Porém, pesquisas mostraram que é menos dispendioso do que manter no sistema uma frondosa coleção de repetentes. Seja como for, na maioria das nossas escolas públicas, tais providências primam pela ausência.
*
PH.D., CONSULTOR INDEPENDENTE, É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.