Quem cuida da educação brasileira não pode ignorar uma notícia do dia 30 de outubro. Nela, é apresentada uma pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), identificando as 29 ocupações (dentre 231) com mais gente abandonando do que entrando. Pois não é que ali estão sete categorias ligadas ao ensino? Isso apesar de ganhos salariais de mais de 50%. Minha preocupação não é com o balanço dos que entram e saem, é apenas com os “fujões”. Por que se vão?
Que alegria ver os alunos felizes, com os olhos brilhando, porque aprenderam alguma coisa importante. Ou ouvir o comentário, muitos anos depois: “Professor, aquela sua aula me marcou”. De fato, o professor molda o futuro dos seus alunos. Que ofícios podem se gabar de tal impacto? Duvido que esses desertores irão para empregos com o mesmo potencial de realização pessoal. Contudo, a conclusão é clara, se estão fugindo, alguma coisa muito ruim deve estar acontecendo na escola.
E não é só isso. Das sete profissões escolares, campeãs da evasão, três correspondem a professores lidando com o processo de ensino. Chamemos isso de teoria cognitiva, didática ou pedagogia, dá na mesma. Importa que abandonaram o campo mais fascinante do magistério.
São profissões que, nos dias de hoje, estão diante de avanços científicos palpitantes. Lá pelos idos de 1900, grandes pensadores revolveram e descartaram muitas ideias velhas de como conduzir uma sala de aula. Propuseram um ensino baseado na curiosidade, na mão na massa e na participação ativa dos alunos no seu próprio aprendizado.
Maria Montessori, Johann Heinrich Pestalozzi, G. M. Kerschensteiner, John Dewey e muitos outros sacudiram práticas que vinham da Idade Média. Deixaram seus escritos. Porém, a revolução ficou no papel, não chegou às salas de aula.
Somando-se a esse memorável salto nas formulações teóricas, pipocou uma outra revolução. Ocorreu um crescimento da pesquisa, resultado da dramática disseminação dos computadores e do crescente uso de medidas de desempenho escolar. Com isso, explodiu o número de estudos, avaliando o impacto de inúmeras intervenções em sala de aula.
Recapitulando, primeiro vieram os grandes avanços conceituais, sugestões de como proceder na sala de aula. Depois, veio uma avalanche de pesquisas, mostrando o que funciona e o que não funciona.
As novas ideias são fascinantes. Porém, grande parte das salas de aula opera em estilos pedagógicos de séculos pretéritos. Há um mundão de inovações bem avaliadas à espera de quem as implemente nas aulas.
Sabemos que ouvir uma aula brilhante ajuda. Mas usar a própria cabeça para lidar com as mesmas ideias é essencial para um aprendizado profundo.
É preciso banir o que A. N. Whitehead chamou de “ideias inertes”. São murchas, estéreis, não provocam efervescência na cabeça dos alunos.
Acho que não erro ao pensar que os maiores pedagogos foram Sócrates, Jesus Cristo e Walt Disney. Sócrates ensinava através do diálogo com seus alunos. Jesus contava histórias, são as suas parábolas, tirando delas conclusões poderosas. Disney desenvolveu múltiplas maneiras de contar histórias, dos desenhos animados aos parques temáticos. A contação de história veste os conhecimentos a serem transmitidos em roupagens atraentes e próximas do mundo de quem as ouve. Para usar as teorias contemporâneas, mobilizam os dois hemisférios do nosso cérebro, o esquerdo, da cognição, e o direito, da emoção. Aparelhos de ressonância magnética mostram visualmente esses processos.
Além de contos e casos, sabemos que metáforas e analogias agem de forma equivalente. Ajudam na compreensão. Dizia-se: “Senta na cadeira e estuda até aprender!”. Bobagem, o aprendizado requer voltar à mesma ideia, muitas vezes. Aprende-se “à prestação”. O aprendizado profundo, o que interessa, requer múltiplas repetições. Não entra tudo de uma só vez.
As taxonomias de objetivos educacionais nos mandam fugir do decoreba. O que interessa são os conhecimentos de ordem superior.
Como é possível que, diante dessa fartura de desafios e voos da imaginação, tantos professores estejam fugindo?
Se isso acontece, alguma coisa está profundamente errada. Como é possível que uma das áreas mais palpitantes e borbulhantes da ciência esteja sendo abandonada por esses mestres?
É mais do que compreensível que uns tantos não se ajustem, por muitas razões. Porém, quando o número de fujões coloca essas profissões no topo da lista das mais abandonadas, não podemos pôr a culpa neles.
É inevitável concluir que grassam enfermidades crônicas no funcionamento das escolas. Ambiente tóxico, alunos desmotivados, formação deficiente? Alguém tem que responder.
Se me permitem voltar a minha experiência pessoal, escrevi um livrinho, cujas vendas ultrapassaram 80 mil exemplares (Você Sabe Estudar?). Foi lido por alunos, pais e professores. Nele, não inventei nada de novo, apenas apresentei o que se sabe hoje sobre a ciência de ensinar. No mínimo, as vendas sugerem que o assunto desperta interesse.
Essa tabela do Estadão é um grito lancinante da profissão docente. Deveria ser o ponto de partida para uma busca de explicações e soluções.
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PH.D., CONSULTOR INDEPENDENTE, É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO
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