O Supremo Tribunal Federal (STF) adquiriu um protagonismo inaudito na vida nacional nos últimos anos – especificamente nesse período que cobre o trevoso mandato de Jair Bolsonaro e a conturbada transição para o governo de Lula da Silva – como um dos mais rígidos anteparos às ameaças ao Estado Democrático de Direito no País. Não foram triviais os desafios do STF em meio ao maior teste de estresse da democracia brasileira desde a promulgação da Constituição de 1988.
Paradoxalmente, porém, esse mesmo STF se mostra cada vez mais à vontade para exorbitar os limites que lhe foram determinados pelos constituintes originários, o que configura uma clara afronta ao próprio Estado Democrático de Direito pelo qual a Corte diz zelar. Sempre movidos por boas intenções, aquelas das quais o inferno está cheio, alguns ministros da Corte têm extrapolado seus papéis institucionais para se imiscuírem em questões que nem remotamente lhes dizem respeito.
Até o calouro ministro Flávio Dino entendeu rapidamente como a banda passou a tocar naquele canto da Praça dos Três Poderes. No dia 27 passado, Dino ordenou que, em 15 dias, o governo federal mobilizasse as Forças Armadas e agentes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Força Nacional e dos órgãos de fiscalização ambiental para acabar com o fogo na Amazônia e no Pantanal, inclusive agindo “de forma repressiva e preventiva” em ambos os biomas.
Consta que a decisão teria estarrecido o Palácio do Planalto. É provável. Afinal, até outro dia Flávio Dino era um dos mais loquazes membros do primeiro escalão do governo Lula. Contudo, a ordem de Dino é, sim, de estarrecer, mas por outra razão: não compete a um magistrado dizer como nem quando os Poderes Executivo ou Legislativo devem formular e implementar políticas públicas. Aos ministros do STF cabe apenas afirmar se a Constituição está sendo cumprida ou não nos casos que lhes chegam para apreciação. Mas essa anômala competência universal do STF, que se espraiou por instâncias inferiores do Poder Judiciário, virou moda no País.
Não há dúvida de que a propagação do fogo na Amazônia e no Pantanal impõe ações imediatas do governo federal, em conjunto com os entes subnacionais. É dever do presidente Lula da Silva mobilizar seu Ministério para equipar as forças federais de segurança e os órgãos de defesa ambiental, em especial o Ibama, tanto para resolver o problema instalado como para evitar que queimadas ocorram na dimensão em que têm ocorrido. Mais do que o custo reputacional para o Brasil, há vidas em perigo nessas regiões e além, pois, como se sabe, a devastação daqueles biomas produz efeitos nocivos sobre áreas muitíssimo distantes de seus limites territoriais.
Mas não será ao arrepio da Constituição, por mais crítica que seja a situação ou mais bem-intencionado que esteja Dino, que o problema será resolvido. À guisa de dar uma justificativa pomposa para a usurpação de competências pelo STF, Dino afirmou que “estamos diante do que a dogmática vem denominando de ‘processo estrutural’, cuja solução demanda diálogo constante e interinstitucional”. Por “diálogo” leia-se a convocação de mais uma audiência de conciliação mediada pela Corte Constitucional, marcada para o próximo dia 10 – um disparate por si só. Deveria ser ocioso lembrar que à mais alta instância do Poder Judiciário não cabe conciliar coisa alguma. Conciliações são próprias da política, vale dizer, estão a cargo do governo e do Congresso.
Talvez ainda numa espécie de umbral desde sua saída do governo, Dino ainda teve a ousadia de determinar que os ministros da Defesa, da Justiça e do Meio Ambiente instruam a “abertura de créditos extraordinários para fazer face ao custeio das ações emergenciais” que ele mesmo determinara que o governo federal adotasse. Ou seja, não satisfeito em dizer o que o governo eleito tem de fazer para conter os incêndios, Dino ainda achou que era o caso de orientar de onde hão de vir os recursos financeiros para bancar tais ações.
Cedo ou tarde, o fogo será debelado. Mas, seguindo nessa toada, é o STF quem manterá a Constituição um tanto chamuscada.