Em uma manobra política nada sutil, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), criou uma comissão especial para tratar do projeto de lei (PL) que concede anistia aos golpistas do 8 de Janeiro. A decisão foi anunciada no dia em que se previa a votação da matéria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde a aprovação era dada como certa, haja vista que a CCJ foi colonizada por bolsonaristas empedernidos, a começar por sua presidente, Caroline de Toni (PL-SC).
Da CCJ, o projeto tóxico seguiria para o plenário da Câmara, um problema para Lira no momento em que ele tenta construir um consenso em torno do deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) como seu sucessor na presidência da Casa. Como se sabe, a anistia, ao menos em público, opõe PL e PT, partidos fundamentais para o eventual sucesso da candidatura do ungido pelo parlamentar alagoano.
Quem está minimamente familiarizado com os métodos de Lira sabe que, quando ele decide criar uma comissão especial sobre qualquer tema, sua intenção não é outra senão jogar a discussão desse tema para as calendas. Logo, por vias tortas, ou seja, motivado por seu interesse particular, não pelo interesse público, Lira acabou prestando um serviço ao País ao tirar de circulação, ao menos por ora, um projeto de lei indecente que nem sequer deveria ter sido proposto caso houvesse mais respeito pela Constituição de 1988 neste país – e, tendo sido, jamais deveria ter chegado tão longe, a ponto de ser discutido com espantosa naturalidade.
Que fique claro: não há vivalma em Brasília genuinamente preocupada com o infortúnio jurídico-penal da horda que assaltou a Praça dos Três Poderes naquele dia fatídico. Esse projeto de anistia visa a livrar a cara de apenas uma pessoa: Jair Bolsonaro.
Não foi por outra razão que Bolsonaro resolveu fazer uma blitz no Congresso no dia 29 passado – ao que parece, sem ter sido convidado por ninguém. No afã de demonstrar ter uma força política como outrora já teve, o ex-presidente disse para quem quisesse ouvir que “apoiou” a criação da tal comissão especial porque nela vê a “oportunidade” de negociar a inclusão de seu nome entre os anistiados – afinal, o nome de Bolsonaro não é mencionado no projeto de anistia original, e nem poderia, pois o ex-presidente nem sequer é réu, que dirá condenado no processo sobre a tentativa de golpe que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).
Nessa tentativa de afetar uma relevância política que sua condição de inelegível desmente, Bolsonaro, ao contrário, sinalizou fraqueza, para não dizer desespero. São esperadas para breve a conclusão do inquérito da Polícia Federal (PF) sobre o 8 de Janeiro e a subsequente manifestação da Procuradoria-Geral da República, que pode culminar no oferecimento de denúncia contra Bolsonaro ao Supremo. O ex-presidente sabe que o tempo não joga a seu favor no campo jurídico, o que explica sua ânsia de aparentar um protagonismo político sem o qual, é certo, não apenas verá mantida sua inelegibilidade, sem anistia alguma, como, para piorar, sentirá a espada da Justiça penal cada vez mais pesada sobre sua cabeça.
No seio da sociedade, é perfeitamente discutível se as penas impostas pelo STF a alguns golpistas foram compatíveis com a gravidade dos crimes que cometeram. Há não poucos casos de sentenças de até 17 anos de prisão em regime fechado. O que é absolutamente inconstitucional é o Congresso se arvorar, por meio desse projeto de lei, em revisor de decisões do Poder Judiciário por percebê-las como “excessivas”. Numa República, isso é inconcebível por ferir de morte o princípio da separação de Poderes. Ademais, a prosperar esse projeto absurdo, o Congresso abastardaria o instituto da anistia em nome de um bando que decidiu se insurgir contra um resultado eleitoral legítimo.
Que Lira, Motta, Valdemar Costa Neto, Bolsonaro e até parlamentares do PT tenham concordado com o adiamento da tramitação do PL da Anistia diz muito sobre o que os motiva. Para o País, é inaceitável o perdão aos golpistas. Todos eles.