É chocante que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, tenha cogitado “transferir” a Cracolândia de lugar, como se isso fosse possível. A ideia de mover o chamado “fluxo” de dependentes químicos da região dos Campos Elíseos para o bairro do Bom Retiro era, por si só, um disparate. Felizmente o sr. Tarcísio voltou atrás, mas preocupa que o governador paulista, malgrado ter sido eleito com a promessa de acabar com a Cracolândia, não tenha um plano elaborado para cumpri-la, limitando-se a apresentar uma ideia que não passava de conversa. Em suas próprias palavras, o governador confessou que não sabia se a coisa iria funcionar: “Vamos ver se a estratégia dá certo. Não sei, é tentativa e erro”.
Ora, já é enorme o acervo de erros cometidos por sucessivas administrações da capital e do Estado em relação à Cracolândia. O governador Tarcísio não precisa contribuir com novos. O que se espera de quem solenemente garantiu que faria diferente dos antecessores nesse caso é apresentar uma estratégia concreta, baseada nas lições supostamente aprendidas com os fracassos. Tanger os dependentes para lá e para cá, como se gado fossem, na esperança de que façam uso dos equipamentos estatais de saúde e se livrem do vício, é uma rematada sandice.
A Cracolândia, ao contrário do que sugere o nome, não é um lugar geográfico nem um endereço da cidade. É uma tragédia de múltiplas e complexas dimensões, que causa impactos sobre a vida não apenas na capital paulista, mas em todo o Estado – afinal, o crack não brota do concreto no centro de São Paulo.
A ideia da transferência do “fluxo” não seria digna de consideração mais séria ainda que fosse só uma ideia errada. Mas a proposta era bem pior: era leviana. Tal era o descalabro que a mudança nem sequer foi combinada com a Prefeitura de São Paulo. À imprensa, o prefeito Ricardo Nunes falou em “mal-entendido” apenas para ser elegante com o governador.
Definitivamente, a Cracolândia não vai sumir por dispersão nem deixará de existir por repressão policial apenas – ainda que, por óbvio, o Estado tenha o dever de combater de forma implacável o crime organizado que opera na região, particularmente o Primeiro Comando da Capital (PCC), que há um bom tempo enxergou na desdita física e psíquica dos dependentes de crack mais um filão para encher os cofres do bando.
Não adianta empurrar o problema da Cracolândia de bairro em bairro, como se traficantes e dependentes químicos pudessem ser vencidos pelo cansaço. É inaceitável que a vida de milhares de paulistanos vire um inferno do dia para a noite simplesmente porque nem o governo do Estado nem a Prefeitura da capital paulista sabem o que fazer para pôr fim a uma tragédia social.
Soluções sustentáveis para a Cracolândia passam, necessariamente, por políticas públicas que combinem repressão policial ao crime organizado, programas de tratamento médico-psicológico para os dependentes químicos, acompanhamento social e, não menos importante, atenção aos muitos dramas subjacentes ao vício, como o desemprego, a falta de moradia e a violência doméstica, entre outros. Não será com bravatas nem tampouco com ideias mirabolantes que a Cracolândia vai desaparecer. Passa da hora de um plano de ação definitivo.
Ainda bem que o governador teve a humildade de voltar atrás, reconhecendo que a medida, obviamente, não iria funcionar. “Sou humano. Não tenho problema em corrigir o caminho”, disse Tarcísio. Em sua defesa, registre-se que poucos são os administradores públicos que têm essa atitude quando confrontados com os seus erros. O recuo, entretanto, não é suficiente para aplacar o espanto deste jornal diante do fato, de resto incontornável, de que Tarcísio, ao fim e ao cabo, mostrou não ter ideia do que fazer com a Cracolândia, uma ferida aberta no coração da cidade mais rica e equipada do País há cerca de 30 anos.