O ruidoso e claramente inconstitucional pacote anti-STF revela-se mais do que um instrumento de vingança do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e de parlamentares instalados nas hostes bolsonaristas e do Centrão contra o Supremo Tribunal Federal. É não só uma vendeta contra a Constituição, como este jornal sublinhou há alguns dias, mas também um ato de má-fé, um desvio de rota do que se espera de um debate parlamentar sério, que respeita a democracia e a separação entre os Poderes.
Se fossem regidas pela boa-fé, a discussão e a tramitação das propostas buscariam corrigir os excessos do STF, não emparedar a Corte (e não faltam excessos de ministros do Supremo para serem corrigidos, sobretudo alguns integrantes que se sentem acima do bem e do mal). Mas as intenções do pacote são de outra natureza. E o que surgiu sob o pretexto de “reequilibrar” os Poderes deflagra, ao contrário, mais desequilíbrio, ao dar poderes absolutos ao Congresso. Eis aí o que pretendem, na prática, os liberticidas que hoje se apresentam como a vanguarda do combate ao “ativismo judicial”.
Julgando-se maioria não só no Congresso, mas na sociedade, esses inconformados com a democracia parecem ter concluído que essa sua alegada condição majoritária durará para sempre. Não lhes passa pela cabeça, desacostumada de raciocinar com bom senso, que a emasculação do Supremo, uma vez inscrita na Constituição, servirá a quem for maioria, agora e no futuro. Como a democracia tem como pressuposto a alternância no poder, presume-se que, em algum momento, a maioria de hoje será a minoria de amanhã. Ou seja, se hoje seria a direita reacionária a maior beneficiada de uma eventual redução do poder do Supremo, amanhã pode ser a esquerda autoritária. A não ser que a democracia representativa seja extinta no País, como aliás desde sempre desejaram o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus devotos mais radicais, essa hipótese não é implausível.
Como se viu, o pacote foi desengavetado tão logo o ministro do STF Flávio Dino decidiu suspender o pagamento de emendas parlamentares até que o Palácio do Planalto e o Congresso estabeleçam mecanismos de transparência para controle da disposição desses recursos públicos. No pacote, há propostas legislativas como a PEC 28/2024, que propõe dar ao Congresso o poder de suspender, por até quatro anos, decisões do Supremo, se dois terços dos integrantes de cada uma das Casas Legislativas considerarem que elas ultrapassam os limites legais. Dois projetos de lei (PL 658/2022 e PL 4.754/2016), por sua vez, tratam de novas hipóteses de impeachment de ministros do STF. Entre elas, usurpar as competências do Legislativo e violar a imunidade parlamentar em votos e decisões.
São iniciativas forjadas por quem acredita que seu poder vai durar para sempre. O risco parece especialmente importante quando se propõem regras vagas o suficiente para funcionar conforme a interpretação de ocasião. É o caso do impeachment de ministros do Supremo. O pacote amplia o rol de crimes de responsabilidade e permite a possibilidade de processos em decorrência de medidas tomadas monocraticamente por ministros. Trata-se de alínea escrita sob medida para o principal desafeto do bolsonarismo, o ministro Alexandre de Moraes. No entanto, poderia, amanhã ou depois, servir para eventualmente punir, por exemplo, um ministro irresponsável que fizesse o que Kassio Nunes Marques fez em plena pandemia de covid-19. Recorde-se que Nunes Marques, indicado à Corte pelo então presidente Bolsonaro, mandou reabrir templos religiosos mesmo diante da necessidade óbvia de distanciamento social, numa decisão monocrática que figura entre as piores da história do Supremo e que, por esse motivo, rapidamente foi revertida pelo alarmado plenário.
Em resumo, cuidado com o que se deseja. É preciso boa-fé nos debates sobre propostas que, na prática, podem modificar profundamente o horizonte republicano de um país. Seus efeitos e seus riscos requerem prudência, cautela e discussão qualificada – e não o revanchismo irresponsável que parece prevalecer no momento.