Hoje, 1.º de março, completam-se 30 anos da entrada em vigor da Unidade Real de Valor, conhecida como URV – a inovação monetária que abriu o caminho para a chegada do real e permitiu ao Brasil estabilizar sua moeda e vencer a inflação. Ali começava oficialmente o Plano Real, o mais bem-sucedido plano de estabilização e ponto de partida do mais longevo período de avanço social e econômico em nossa história. Num país que conviveu com planos de curto prazo, populismos de toda ordem e sucessos seguidos de descontinuidade e fracasso, o Plano Real atravessou mandatos de seis presidentes de diferentes colorações ideológicas e partidárias, enfrentou turbulências e superou o risco de políticas irresponsáveis ocasionalmente adotadas em períodos anteriores às eleições. Mas manteve a essência da estabilização de preços e da permanência de um mesmo padrão monetário, dois feitos notáveis para um país que chegou a ter quatro moedas em apenas oito anos.
Essa longeva estabilidade, a despeito dos momentos de riscos, é fruto de dois fatores essenciais, que devem ser reafirmados no presente e no futuro. Um, mais evidente, é a qualidade da concepção e da execução do Plano Real. Liderado pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, aquele admirável grupo de economistas – entre os quais André Lara Resende, Persio Arida, Edmar Bacha, Gustavo Franco e Pedro Malan – corrigiu os erros dos fracassados planos anteriores, invariavelmente ancorados em congelamentos de preços, e tornou o plano um impulso para reformas modernizantes, sem as quais os riscos de insucesso seriam maiores.
O segundo fator é de natureza política e menos notada até aqui: a democracia foi a força que manteve a economia nos trilhos nesses 30 anos. Coube à democracia ser a sustentação para que a estabilidade dos preços se tornasse um bem da sociedade brasileira, um dos pilares de seu funcionamento, e os políticos que ousam ameaçá-la costumam ser punidos nas urnas. Essa dinâmica democrática como segredo do sucesso e da longevidade do Plano Real foi destacada esta semana pelo economista Persio Arida, em entrevista ao jornal Valor Econômico. “Uma estabilidade de preços é um valor do povo brasileiro. O governante sabe que, se der inflação, ele estará politicamente morto”, disse.
Juntamente com André Lara Resende, Persio Arida foi autor do texto teórico que deu origem ao Real, o chamado “Plano Larida”. Foi nesse trabalho, publicado em 1984, que ambos pensaram a ideia de um plano capaz de romper a dinâmica de alta de preços criando um sistema de duas moedas: a antiga, inflacionada, e uma nova, que teria seu valor corrigido diariamente. No Plano Real, a moeda corrigida foi a URV, como uma unidade de valor que transplantaria a economia da moeda anterior para o real, a nova moeda que seria formalmente instituída em julho de 1994. Salários, benefícios previdenciários e contratos do setor público foram convertidos em URVs e, assim, tiveram seu valor protegido contra a inflação, enquanto os preços seguiram na moeda antiga. O ex-ministro da Fazenda Mario Henrique Simonsen definiria a URV como “o mais genial e criativo invento de nossa história econômica”.
Mesmo genial e criativo, um invento não se sustenta no tempo sem condições políticas para tal, e sem lideranças capazes de apoiá-lo. Razões pelas quais a dinâmica democrática é tão fundamental, conforme sublinhou Arida. Como ele lembrou, a inflação foi de 12% a 200% ao ano durante a ditadura militar sem que houvesse nenhum plano de estabilização para controlá-la. Isso seria improvável em contextos democráticos, pois o controle da inflação tornou-se um sistema de pressão sobre os políticos. Ninguém quer ver repetir o flagelo que atormentou o País durante décadas, registrou picos de até 2.500% ao ano e puniu especialmente os mais pobres.
Lideranças lulopetistas de memória curta volta e meia tentam desacreditar essa conquista – não custa lembrar que, de olho nas eleições, apenas Lula e o PT foram contra o Plano Real. Mas são rejeitados por uma premissa essencial do nosso tempo: não se trata mais de uma escolha, e sim de uma imposição do Brasil democrático.