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Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | A mentalidade russa

Vladimir Putin não previu que os ucranianos não se reconheceriam em sua ‘russidade’, preferindo abraçar os valores atlantistas.

Por Denis Lerrer Rosenfield

Decisões políticas, geopolíticas, diplomáticas e militares são tomadas conforme as ideias que os decisores, as autoridades púbicas, têm em mãos. Decisões não são tomadas no vácuo, envolvendo assessores, ministros e responsáveis civis e militares, que não apenas se fazem presentes, mas também veiculam propostas e concepções de mundo. Eis por que, a propósito da guerra na Ucrânia, se torna importante pesquisar quais são as ideias que presidiram a invasão russa, para além dos interesses geopolíticos em jogo.

Um dos ideólogos mais importantes da Rússia atualmente, com influência direta no debate de ideias naquele país, tendo, inclusive, influência sobre Putin, chama-se Alexander Dugin. Sua grande inspiração é o pensador nazista Carl Schmitt, e utiliza, a propósito, duas de suas obras: 1) O Conceito do Político, em que apresenta sua concepção deste a partir da distinção amigo/inimigo, o primeiro termo designando os aliados e o segundo, os adversários, que devem ser literalmente eliminados, não apenas verbalmente, mas fisicamente; e 2) The Grosssraum Order of International Law with a Ban on Intervention for Spatially Foreign Power, focando em países imperiais que precisam de grandes espaços, não podendo sofrer qualquer limitação externa, nenhuma legalidade internacional sendo reconhecida.

No caso de Schmitt/Hitler, os inimigos designados, reais ou imaginários, foram os judeus, os homossexuais, os ciganos, pessoas com deficiência física, as testemunhas de Jeová, os comunistas, os banqueiros. Hoje, para os russos, é a Otan, que, para Dugin, é um braço armado dos EUA, o que denomina de atlantismo, cujos valores são diametralmente contrários aos seus. No caso da noção de “grande espaço”, a analogia é manifesta com a noção nazista de “espaço vital”, que orientou no início a geopolítica hitlerista com as invasões dos Sudetos, depois de toda a Checoslováquia e da Polônia. Hoje, o espaço vital de Putin é a Ucrânia, tendo antes colocado suas tropas na Chechênia, na Geórgia e na Crimeia, almejando entrar futuramente nos países bálticos.

A denominação de que Dugin se apropria para designar sua própria concepção é a de “conservadorismo revolucionário”, tendo na guerra um valor central seu: o “conservador não deve mentir; ele prefere a guerra, não a paz”. Ela é o seu estado natural em que o seu espírito se afirma e se fortalece. Uma invasão, nessa perspectiva, seria uma mera prolongação deste espírito que unifica o povo, não devendo lamentar pelas vidas perdidas. Um povo que não guerreia é um povo decadente.

Sua concepção apresenta-se como sendo eurasianista, baseada não apenas na história e na cultura russas, mas em seus valores, que se distinguiriam totalmente dos valores ocidentais. Por exemplo, o individualismo ocidental carece totalmente de valor para ele, sendo uma invenção do “liberalismo”, retomada como ideologia pelo atlantismo. Em seu lugar, entrariam o “povo”, Narod, que é um decalque, reconhecido por ele mesmo, do termo alemão Volk, que, por sua vez, é a base da concepção nazista e schmittiana, e o “Império”, retomado igualmente da concepção nazista do Reich.

Os valores ocidentais não teriam nenhuma validade universal, mas seriam particulares. Não haveria por que reconhecê-los como tendo valor para além dos Estados americanos e europeus, sobretudo continentais, do Oeste, e não do Leste, que seriam eslavos e, logo, próximos dos russos. Portanto, compreende-se melhor quando agora, na invasão russa, a sua elite mostra um claro desprezo pelos direitos humanos, bombardeando populações civis, inclusive hospitais e maternidades, ou pela democracia, desconhecendo uma decisão soberana da sociedade ucraniana. Nesta perspectiva, o desafio atual da Rússia consiste em recuperar o seu “grande espaço”, o seu “espaço vital”, porém, agora, segundo os valores “eurasianos”, não europeus.

Causou grande celeuma a fala de Putin declarando que a Ucrânia simplesmente não existe, mas faz parte da “Grande Rússia”. Existência, para ele, significa o que entende como sendo os seus valores eslavos, algo muito distinto de uma existência estatal que seria nada mais do que algo artificial. As tropas russas estariam realizando uma espécie de reparação histórica, uma retomada do que já é ou seria russo. Ora, essa ideia está explicitamente enunciada em Dugin: “Ucrânia, em suas fronteiras contemporâneas, simplesmente não pode existir”.

Dessa concepção decorre um erro estratégico de Putin, o de considerar que sua invasão seria rápida, bem-sucedida, visto que os “russos (ucranianos)” acolheriam de braços abertos os “russos (russos)”. Seria uma confraternização entre irmãos, enfim juntos e libertos, compartilhando dos mesmos valores e ideias. Não previu que os ucranianos não se reconheceriam em sua “russidade”, preferindo abraçar os valores atlantistas, os dos direitos humanos, da democracia e da soberania dos povos. Houve, aqui, para além dos enfrentamentos militares, um choque de concepções, de mentalidades.

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PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

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