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Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Convívio com a maldade

Anos depois, lendo o jornal, Gabriel terminou por descobrir a identidade de seu potencial ‘sogro’. Era nada mais nada menos do que o comandante dos campos de Treblinka e Sobibor

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O pai gostava de contar histórias para sua filha antes de dormir. Se fosse o caso, cantava canções de ninar: uma pessoa normal, plena de dedicação. Tudo aparentemente de acordo com a convivência familiar, como se esse cotidiano fosse a regra, não admitindo nenhuma exceção. No entanto, seu trabalho de policial já tinha sofrido uma grande alteração, tanto em termos financeiros como de prestígio. A partir do momento em que os uniformes pretos da SS passaram a frequentar a sua casa, sua vida já era totalmente outra.

Ascendeu na carreira, exibia uma eficiência acima do comum no genocídio de judeus, homossexuais e ciganos, tendo também se destacado no assassinato de deficientes mentais. Tornou-se, por seus feitos, comandante dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibor. Seu nome era Franz Stangl. Mais propriamente poderia ser denominado de especialista no culto da morte e em sua organização em uma máquina de extermínio. No entanto, continuava a ser um pai carinhoso. Nele conviviam a aparente doçura do pai e o monstro, dedicado, em outro sentido, à maldade.

Finda a guerra, fugiu para a Síria, onde pôde novamente pôr sua “qualificação” a serviço do Exército e de seu serviço de inteligência, pois, sendo um especialista da tortura, poderia bem vender os seus préstimos. Ademais, continuaria colaborando com o extermínio dos judeus, naquele então lutando pelo estabelecimento do Estado de Israel e, depois, em sua consolidação. Mudou de lugar, mas não de convicção. No entanto, um alto funcionário sírio quis com ele acertar o seu casamento com sua filha, prestes a completar 14 anos. Não querendo comprometer o seu futuro, conseguiu graças a seus parceiros nazistas fugir para o Brasil, onde se tornou um trabalhador da Volkswagen. Na ocasião, o pai primou sobre o monstro!

Nesse meio tempo, um jovem húngaro, Gabor (Gabriel Waldman, Ingrid, a Filha do Comandante, com prefácio de Celso Lafer e posfácio de Marcio Pitliuk, Buzz Editora), tinha se estabelecido no Brasil, depois de vagar pela Áustria com sua mãe. Eram pessoas abandonadas no mundo, não tendo a quem recorrer. A fome, a solidão e a ausência de esperança os habitavam. Seu pai e toda a sua família tinham perecido nos campos. Viveram no imediato pós-guerra na Hungria, que tiveram de abandonar dada a instalação de uma ditadura comunista. De um mal a outro! Aportaram em nosso país em 1952, em busca de uma nova vida. No entanto, a maldade continuava à sua espreita, embora não o soubesse.

Tendo aprendido nosso idioma, inscreveu-se em um curso de madureza para concluir seus estudos. Eis que, um dia, uma bela mulher loira irrompe em sua sala de aula, cabelos esvoaçantes, e senta-se ao seu lado. Foi uma paixão instantânea, tendo como idioma o alemão. Era, ainda, do ponto de vista de seu trabalho, chamado como intérprete em empresas alemãs, conferindo a essas um ar de normalidade. O amor tudo apagava, um nem sabendo nem se interessando pela vida do outro. Os corpos falavam a sua linguagem própria.

Acontece que foi convidado a uma festa de amigos dela, quando, de imprevisto para ele, mas não para ela, foi levado a uma casa vizinha para conhecer os seus pais. Foi a eles introduzido de uma forma cordial, porém um pouco fria. O aperto de mão já anunciava que algo diferente estava presente, embora não fosse diretamente anunciada qualquer anormalidade. Ocorre que o pai era nada mais do que Franz Stangl. Aperto de mão em certo sentido aterrador, pois estava convivendo com uma pessoa direta ou indiretamente responsável pela morte de seu pai e de sua família. Era a mão da morte, travestida da familiaridade de vida.

Gabor, agora Gabriel, nada sabia. Ingrid, sua namorada, estava a par de tudo, embora achasse que estava autorizada a escolher suas companhias. Um judeu na família do monstro. A atração dos corpos, todavia, foi anulada pela decisão paterna de interromper essa relação, com medo, provavelmente, de que sua identidade terminasse por ser revelada. Aos prantos, a bela loira cortou seu relacionamento, deixando o seu companheiro perplexo.

Anos depois, lendo o jornal, terminou por descobrir a identidade de seu potencial “sogro”. Era nada mais nada menos do que o comandante dos campos de Treblinka e Sobibor, enfim revelado em sua crueldade. Foi extraditado para a Alemanha, lá tendo sido julgado e condenado à morte. Ingrid, símbolo do amor e da vida, tinha desaparecido, dando lugar à morte enquanto expressão, por sua vez, do “mal existencial” ou do “mal absoluto”. Significa: fazer o mal pelo mal e não como mero contraponto ao bem.

A natureza humana expõe assim todos os seus enigmas. Uma pessoa em uma situação de normalidade, digamos, pode assumir uma outra faceta, a de alguém dedicado ao culto do ódio e à destruição total do outro. Perigo sempre presente, mormente em situações de guerra ou, mesmo, de calamidade, onde o que há de melhor e de pior no ser humano comparecem conjuntamente. O horror não cessa de estar presente!

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PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

Opinião por Denis Lerrer Rosenfield

Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

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