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Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Corsários e mercenários

Independentemente de qual grupo emerja vencedor dentro da elite dominante russa, o caráter monolítico de seu governo se esfacelou

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Piratas eram aventureiros que viviam do saque e do assalto de embarcações, normalmente carregadas de riquezas, como o ouro explorado pelos espanhóis em suas colônias americanas. Distinguiam-se, porém, dos corsários na medida em que estes agiam sob a cobertura da Coroa de um país, prestando-lhe serviços e fornecendo-lhe uma parte dos seus butins. Um dos mais famosos foi Sir Francis Drake a serviço da rainha Elisabeth I, tendo sido, precisamente por isso, agraciado com o título de “sir”. Constituíam uma espécie de armada dentro da Armada, respondendo diretamente à rainha. Tinham o reconhecimento régio.

Mercenários são, em terra, descendentes dos corsários, reportando-se diretamente ao presidente de um Estado, compartilhando com ele dos benefícios dos sucessos militares. Yevgeny Prighozhin é, nesse sentido, o corsário de Putin, respondendo até recentemente diretamente a ele, tendo, inclusive, independência, e não subserviência às Forças Armadas tradicionais. Um Exército dentro do Exército, com seus tentáculos se estendendo até a África, além da presença marcante na invasão russa à Ucrânia. Tudo indica, no entanto, que a criatura se voltou contra o criador.

A questão que se coloca, contudo, é por que o criador optou por compactuar com sua criatura rebelde, quando se sabe que Putin tem uma predileção por aniquilar seus críticos mais acerbos. Boa parte dos oligarcas que se insurgiu contra ele tropeçou em janelas de altos andares de vários hospitais, testando a Lei da Gravidade e se estatelando no chão. Outros foram objeto de envenenamento por intermédio de guarda-chuvas ou outro instrumento prosaico qualquer. Todavia, Prighozhin ganhou, pelo momento, um exílio tranquilo graças à intermediação de um ditador menor, Alexander Lukashenko, de Belarus – se é que pode haver tranquilidade em meio a autocratas violentos e arbitrários.

A razão da insurgência, muito provavelmente, se deve à diretriz do Ministério da Defesa, liderado por Serguei Shoigu, certamente com a anuência de Putin, obrigando os mercenários a se inscreverem nesse ministério, tornando-os de fato soldados regulares, com a obediência devida às autoridades militares. Algo, portanto, inadmissível para Prighozhin, que perderia a sua autonomia militar e econômica. Haveria, também, uma nova distribuição dos butins, seja nos contratos estatais, seja nos países africanos. Não convém esquecer que no modelo mercenários/corsários todos são sócios.

Para ter uma ideia da importância do Grupo Wagner, ele está presente em 13 países africanos, seja com atuação militar propriamente dita, seja com consultoria estratégica e influência política, seja em atividades econômicas como a exploração de minas de ouro. Estima-se que sejam 5 mil homens muito bem treinados, aos quais se subordinam as tropas locais. Eis os países: Sudão, República Centro Africana, Líbia, Mali, Moçambique, Camarões, Madagascar, Burkina Faso, Congo, Guiné Equatorial, África do Sul, Zimbábue e Quênia. Note-se que os dirigentes desses país, alguns meros ditadores, fazem acordos de cooperação com a Rússia, que envia para sua implementação o Grupo Wagner. A cooperação se dá graças à ação conjunta, associada, de Putin e Prighozhin. Os prejuízos de ambos podem ser, aqui, múltiplos.

Putin e Shoigu tentaram restabelecer a autoridade estatal, depois de o primeiro ter usado e abusado da dualidade de poder por ele criada entre mercenários e militares. Ocorre, porém, que o tiro saiu pela culatra, pois expôs a fratura existente dentro do Estado russo, como se fossem lideranças mafiosas se digladiando. Ameaçado em suas posições, Prighozhin marchou para dentro do território russo, ocupando Rostov-on-Don, sem tiro disparar, contando, muito provavelmente, com o apoio de militares regulares. Seriam corsários tentando se apropriar da Armada. E empreenderam um avanço rumo a Moscou, abatendo quatro helicópteros e um avião em seu percurso. Putin considerou a sua ação um ato de traição e, no entanto, não enviou a sua Força Aérea para aniquilá-los. Contentou-se com uma negociação, expondo a sua própria fragilidade.

O Estado russo sai fraturado do episódio. Independentemente de qual grupo emerja vencedor dentro da elite dominante, o caráter monolítico de seu governo se esfacelou. Quem decide tornou-se uma questão crucial, com os diferentes atores esforçando-se por guardar posições. Escancarou-se, igualmente, a ideologia da Grande Rússia, que tem em Alexander Dugin um dos seus expoentes, visto que o mercenário declarou que não havia ameaça ocidental à Rússia, como seus ideólogos quiseram fazer acreditar. Não apenas os eslavos ucranianos estão se mostrando melhores guerreiros que os eslavos russos, como o governo russo teve, inclusive, de recorrer ao líder checheno, Ramzan Kadyrov, para conter os avanços das tropas de Prighozhin.

A Coroa se fraturou, assim como se estilhaçou sua justificativa ideológica, graças a um corsário particularmente audacioso.

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PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

Opinião por Denis Lerrer Rosenfield

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