O antiocidentalismo faz parte da cultura ocidental. O Ocidente sempre esteve permeado por contradições internas, algumas das quais atentaram contra os seus próprios fundamentos. Propostas liberais e democráticas foram se desenvolvendo concomitantemente ao racismo, à escravidão, ao antissemitismo e ao colonialismo. Mais radicalmente ainda, o Ocidente gerou em seu seio regimes totalitários como o nazismo e o comunismo, que conflagraram a Europa, colocando-a a perigo. No entanto, o Ocidente soube se reinventar, fortalecendo valores de cunho universal.
No núcleo dessas contradições, convém salientar o papel do marxismo e, sobretudo, de seus prolongamentos no comunismo soviético, no maoísmo e em outros ismos como os que levaram a mortandades monstruosas como no Camboja e na Ucrânia. A história desses horrores está repleta de exemplos, a única dificuldade reside na escolha de alguns deles. O destaque deve ser, assim, ressaltado, visto que tal concepção nasceu de princípios universais, como a igualdade entre os homens, que seria contraposta à liberdade, embora a realização dessa proposta tenha logo ganhado um caráter perverso. A violência foi generalizada e valores universais foram simplesmente destruídos em nome das “transformações sociais” em curso.
O Ocidente voltou-se contra o Ocidente. Lenin e Trotsky ainda ostentavam valores universais, sobretudo esse último, já como profeta desarmado, para utilizar essa expressão de Isaac Deutscher. Contudo, mesmo eles, no auge da revolução, não hesitaram em eliminar todos aqueles que com eles não concordavam, instaurando uma ditadura de partido único. O massacre dos anarquistas em Kronstadt e dos mencheviques, aliados e amigos naquele então, assim como de todos os outros socialistas, é uma amostra do apreço pela violência e do desprezo para com a democracia e com ideias verdadeiramente universais.
Com Stalin, nem mais a aparência dos valores universais do Ocidente foi resguardada. Instaurou um regime totalitário, controlando a vida das pessoas, criando o gulag para onde eram enviados para os trabalhos forçados e à morte os seus dissidentes. Só intelectuais amigos e professores universitários fecharam os olhos diante do horror, procurando justificá-lo. Stalin não hesitou, inclusive, em se aliar a Hitler no famoso Pacto Molotov-Ribbentrop, de 1939 a 1941. Tudo valia contra o Ocidente, o “capitalismo”. Note-se que já estamos em plena guerra, com a França derrotada, o Reino Unido resistindo e os Estados Unidos hesitando em entrar no conflito. Contra o Ocidente, naquele momento representando claramente a democracia e as liberdades, comunismo e nazismo se irmanaram. Apenas a invasão da Rússia, na Operação Barbarossa, pela Alemanha, rompeu com esse pacto. Stalin ficou tão atônito, que chegou a não acreditar que os nazistas estavam invadindo o seu território. Acreditou no “amigo”, que compartilhava valores seus.
Atualmente, estamos vivenciando uma volta dessa proposta antiocidental, isso quando os princípios da liberdade e da igualdade, por intermédio da democracia, do Estado de Direito e dos direitos humanos, tinham conseguido se sustentar e desenvolver. A especificidade, porém, consiste em que o seu aliado maior reside no terror islâmico e em regimes de cunho totalitário como o Irã. Qualquer resquício de valores universais simplesmente se evaporou. A esquerda identitária, dita anticolonial, uniu-se a uma proposta ancorada no ódio do outro e no culto da morte, como tão bem mostra o Hamas, voltado ao aniquilamento de Israel, à utilização dos palestinos como escudos humanos, tornando o “martírio” um exemplo a ser seguido. Ou os iranianos que assassinam mulheres, às centenas, se não milhares, por não se vestirem de acordo com suas regras rígidas de vestimentas. O antiocidentalismo se posicionou contra aquilo que o Ocidente de mais alto moralmente criou.
Curioso que o antiocidentalismo, ao tecer essa aliança, se volte contra aquilo que diz defender. Homossexuais e LBGT+ são simplesmente presos e assassinados nesses regimes de puro domínio da polícia islâmica. E, no entanto, prezam os seus potenciais assassinos. A esquerda, e nesse caso a brasileira também via PT e PSOL, se cala diante de tão flagrantes contradições. Um país colonialista como o Irã, que já domina partes do Iraque, do Líbano, do Iêmen e da Síria, pretendendo alongar os seus tentáculos para a Jordânia e Israel, é hoje um grande aliado do atual governo.
O tal posicionamento do dito Sul Global tem como “inimigo” os países ocidentais, naquilo que essa cultura produziu de melhor, em uma comunidade de países autocráticos e ditatoriais, que comungam de valores liberticidas. Nada compartilham de universal no combate comum ao Estado Democrático de Direito e à afirmação da liberdade em seus mais diferentes domínios.
No discurso e na prática, essa tem sido a posição do governo petista, de sua política diplomática e de partidos como o PT e o PSOL. Já passou o momento de o País mudar de rumo.
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PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR
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