O maior eleitor de Lula foi Jair Bolsonaro. O novo presidente não foi eleito por suas ideias – aliás, inexistentes –, mas por reação ao atual presidente e ao bolsonarismo em geral. Suas propostas se reduziram aos velhos chavões petistas e a uma curiosa seleção de suas administrações passadas, dosadas com cuidado de modo que o governo Dilma desaparecesse dessa sua apresentação. Ele seria, constrói-se a lenda, a “solução” por sua mera presença. Parafraseando Lenin, não se colocou uma questão central: O que fazer?
Diante deste vácuo de ideias, em que se confunde responsabilidade fiscal com social, como se o desrespeito à primeira não se traduzisse por seus efeitos na segunda, mediante inflação, baixo crescimento, juros altos, recessão e desemprego, o presidente Lula optou por uma eclética e enorme equipe de transição. Tão grande que se torna muito mais difícil do que formar um ministério e governar. Ali, conforme as pressões vão se fazendo, escolhe-se X ou Y ao sabor de circunstâncias, pretendendo transmitir a mensagem de que há algo sendo feito.
Nada muito diferente das administrações petistas anteriores em níveis municipais, estaduais e federal. No Executivo da União, foram o Conselhão e os conselhos; no das prefeituras e dos governos foi o orçamento participativo. Vendia-se a ideia da participação como um exemplo de democracia, quando era, na verdade, uma grande encenação com o intuito de velar a hegemonia petista. A equipe de transição assim composta parece uma grande assembleia, a ser controlada pelos que detêm o poder. Quem pagava pelo valor de face sofria um grande prejuízo político. Não poucos incautos embarcaram neste teatro de manipulação.
Agora, estamos vivenciando uma experiência semelhante. Lula dá a impressão de ausentar-se, passando a responsabilidade maior para o ex-governador Alckmin, não sem antes ladeá-lo por figuras proeminentes do PT, que têm, na verdade, muito mais poder do que ele. Ato seguinte, escolhe vários membros de partidos, sindicatos, movimentos sociais e empresariais, transmitindo a mensagem de um amplo diálogo, não sem antes compor essa mesma equipe com um número majoritário de petistas que deterão o controle de tudo. É impressionante o número de membros que compuseram os governos Lula e Dilma, sinalizando, com mais ênfase, uma retomada do segundo mandato do novo presidente e do mandato de sua sucessora, com resultados bem conhecidos. Talvez estejamos diante de um teatro de marionetes.
Não faltam, inclusive, atos de perfídia. O ex-ministro Guido Mantega, detentor de nenhum cargo, mas com a provável aquiescência do presidente Lula e de sua equipe mais próxima, decidiu bombardear uma indicação criteriosa do atual governo de Ilan Goldfajn para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Seja por razões partidárias ou por vaidades pessoais, uma pessoa da maior competência, técnica e apartidária, foi exposta a uma situação de constrangimento por um governo que ainda não assumiu. É uma jogada torpe contra o próprio Brasil. Por que o fizeram? Por que o consideram neoliberal ou outra bobagem do mesmo tipo? Lula foi eleito para fazer algo novo ou para reafirmar ideias mofadas e comportamentos dúbios?
Outra curiosidade preocupante da nova equipe consiste na volta, muito provável, de dois ministérios para cuidar da agricultura, ou seja, o próprio ministério e um outro a ser recriado, o do Desenvolvimento Agrário. Eis o que está ao menos exposto no formato mesmo da equipe de transição. Reintroduz-se a oposição entre o agronegócio e os movimentos sociais, com o MST já começando a agir, com a invasão de duas propriedades rurais na Bahia. Trata-se de uma verdadeira esquizofrenia que tantos males já produziu no País, entre outros o desrespeito à propriedade privada e a generalização das invasões com armas brancas, senão de fogo. Nos governos anteriores, em foros internacionais, o País tinha uma representação bicéfala, de difícil compreensão para qualquer pessoa sensata.
Lula foi eleito tentando, inclusive, recuperar a ideia de uma ampla frente democrática, de modo a agrupar os descontentes com o governo Bolsonaro, vendo nele uma ameaça à democracia graças às suas tendências autoritárias. Participantes das mais distintas orientações, inclusive liberais e de direita clássica, aquiesceram a esse chamado, apostando num novo PT, que não reproduziria a corrupção que foi a sua na arte de governar. Diante de um perigo maior, muitos fizeram vista grossa ao passado de Lula e do PT no poder. Dos males, o menor, muitos disseram.
Por isso mesmo, nenhum cheque em branco foi dado ao PT. Muito menos o de gastar à vontade para além de quaisquer regras de responsabilidade fiscal. Jogar areia nos olhos por intermédio de uma suposta responsabilidade social só torna o futuro mais incerto. Discursos demagógicos aqui de nada adiantam. O período eleitoral foi encerrado e começa o de governar, não admitindo tergiversações, teatros e outras encenações. Será o velho PT a governar ou algo novo será apresentado?
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PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR
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