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Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Redesenho do Oriente Médio

Derrota da agressão iraniana a Israel produziu uma reacomodação política e militar naquela região, exibindo a fragilidade da Síria

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A agressão iraniana a Israel, visando à exterminação desse país – seja indiretamente, por via do Hamas, do Hezbollah, do regime do ex-ditador Bashar al-Assad, dos Houthis e de milícias iraquianas xiitas, seja diretamente por ataques próprios –, terminou numa derrota acachapante. O colonialismo iraniano sofreu um duro golpe, ficando os seus líderes religiosos apenas com uma narrativa belicosa, sem força militar efetiva. Nesse contexto, Israel surge incontestavelmente como vitorioso. Ocorre que esse evento terminou por produzir uma reacomodação política e militar naquela região, exibindo a fragilidade da Síria.

Ahmed al-Sharaa, líder jihadista outrora vinculado à Al Qaeda e fundador do grupo terrorista al-Nusra, surge como o grande vitorioso da guerra civil síria. Independentemente de agora procurar se apresentar como líder responsável, aparando a barba, abandonando o turbante e as roupas militares, é inegável que nada disso teria acontecido se ele e seu grupo não tivessem percebido a fragilidade de Bashar al-Assad. Tiveram visão estratégica. Isso se deve sobretudo a que o poder sírio estava ancorado no Irã, com conselheiros militares e tropas da Guarda Revolucionária, e no Hezbollah, que antes havia enviado seus combatentes. Ora, o Hezbollah foi dizimado por Israel e os iranianos encontram-se na defensiva, com sua defesa antiaérea destruída por Israel. Os russos, que foram também decisivos para Assad, estão completamente enredados na guerra na Ucrânia, nada tendo podido fazer por seu histórico aliado.

Surge, também, a Turquia como vencedora, apoiando o grupo Tahrir al-Sham (HTS), de al-Sharaa. Procurará, sem dúvida, fortalecer o seu próprio poder, seguindo uma agenda própria. Em particular, procurará eliminar os curdos no norte do país, recusando-lhes, como sempre o fez, qualquer possibilidade de autonomia política e administrativa. Ora, os curdos, organizados militarmente pelas Forças Democráticas Sírias (FDS), por sua vez, contam com o apoio dos EUA, pois foram decisivos na derrota do Estado Islâmico. Apoiaram a sublevação contra Assad, mas são meros aliados circunstanciais do HTS.

Note-se que os curdos são um povo esquecido no desenho territorial pós-Primeira e Segunda Guerras Mundiais, estando hoje divididos territorialmente entre a Síria, a Turquia e o Iraque. Os turcos, em particular, são impiedosos com eles, atacando e bombardeando seus povoados por anos a fio, sem que a comunidade internacional nada diga.

Ironias da História. O Oriente Médio foi desenhado na esteira da derrota dos turcos na Primeira Guerra Mundial. Graças ao Acordo Sykes-Picot (entre Reino Unido e França), de 1916, um pouco antes do fim da guerra, quando esse desenlace já era previsível, o Oriente Médio foi configurado por essas duas potências coloniais. Fronteiras artificiais mal delineadas foram criadas. A França ficou, grosso modo, com o Líbano, a Síria e o norte do Iraque, enquanto ao Reino Unido couberam o sul do Iraque e o que então se denominava Palestina – incluindo o que hoje é o Estado de Israel e a Jordânia –, vindo este a ser considerado posteriormente um Estado Palestino, incluindo a Cisjordânia. A Palestina era o nome romano de um território povoado por árabes, judeus, drusos e beduínos. Jerusalém teria um estatuto internacional particular. Ora, o que estamos hoje observando é a perda de legitimidade e vigência daquele acordo colonial. Recep Tayyip Erdogan aparece, então, como um novo sultão, numa espécie de revanche histórica, reatando com o Império Otomano.

A Síria é um mosaico de etnias e religiões, com árabes, curdos, drusos, xiitas, sunitas, alauítas e cristãos de várias denominações. Manteve-se estatalmente unida graças a uma feroz repressão sobre toda a sua população, impondo a dominação alauíta sobre as outras religiões e etnias. Atualmente, a Turquia já domina direta e indiretamente uma grande porção do norte desse país, limítrofe com sua fronteira, superior a 900 quilômetros. Israel já ocupou a zona tampão no sul, fortalecendo a sua segurança e oferecendo um escudo protetor para os drusos. Observe-se que esse grupo étnico não confia nos novos líderes, como tampouco confiava nos anteriores, sendo por estes violentamente reprimidos.

O xadrez complica-se ainda mais pelo fato de os drusos em Israel serem cidadãos de plenos direitos, com participação relevante na diplomacia e no Exército – alguns são generais importantes. Os drusos nas Colinas de Golã ainda hesitam entre a plena cidadania israelense e o status quo, pois temem ser devolvidos à Síria. Podem prestar serviço militar, se assim o desejarem. Ora, os drusos israelenses pedem a Israel para atuarem na Síria para protegerem os seus, enquanto boa parte deles almeja uma aproximação estreita com o Estado judeu, buscando a sua proteção.

Neste complexo tabuleiro, o mundo pós-Segunda Guerra já se está redesenhando, mostrando a Rússia como precursora desse movimento ao tentar reconfigurar o mapa europeu graças à invasão da Ucrânia. O mundo está mudando a passos rápidos.

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É PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

Opinião por Denis Lerrer Rosenfield

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