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Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Sofrimento e solidariedade

O que estamos vivenciando exprime o que há de pior e de melhor na natureza humana, felizmente para nós com o predomínio do último

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A calamidade climática que se abateu sobre o Rio Grande do Sul é um espetáculo de tristeza e compaixão, isolamento e ajuda mútua, conduzindo a solidariedade de pessoas privadas a um nível de beleza, em dessemelhança com a tragédia reinante. Os contrastes não poderiam deixar de ser inauditos: de um lado, roubos, saques e abusos sexuais dos mais diferentes tipos e, de outro lado, a preocupação com o próximo, o amor às pessoas e a atenção aos necessitados. O que estamos vivenciando exprime o que há de pior e de melhor na natureza humana, felizmente para nós com o predomínio desse último.

Filosoficamente, seria tentado a dizer que esta experiência limite revela aquilo que Thomas Hobbes denominava de estado de natureza, com a exibição primária de egoísmo, de tirar proveito do próximo e de conflitos. Tal estado culmina com crianças e mulheres sendo estupradas em abrigos sem policiamento, com roubo de lojas, com assalto a caminhões de mantimentos e com casas abandonadas sendo pilhadas. O Estado se revelou ausente nesta etapa inicial, estando agora se reconstituindo.

Contudo, revela também aquilo que os filósofos escoceses elaboraram como a teoria dos sentimentos morais, tendo como representantes Francis Hutcheson, Shaftesbury e Adam Smith. As pessoas seriam portadoras de sentimentos morais que se mostram em pequenos fatos, como o de uma vizinha deixando uma garrafa de água na porta de um apartamento, sem nada dizer, até as doações em dinheiro, roupas, mantimentos e trabalho voluntário, tendo como único mote a compaixão. Os gaúchos e os que vieram de outros Estados em seu auxílio exibem sentimentos morais em ação. Talvez alguns nem soubessem que eles existissem com tal intensidade.

Não se trata de minimizar a atuação do Estado nas pessoas do governador Eduardo Leite, do vice-governador Gabriel Souza, do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, de outros prefeitos e, agora, do presidente Lula da Silva. Destacaria também a atuação do Comando Militar do Sul, na figura do general Hertz Pires do Nascimento, que imediatamente soube avaliar a dificuldade da situação e agir em consonância com ela. Múltiplas iniciativas estão a mostrar que não se trata de uma questão partidária, mas do bem comum, da coletividade no sentido mais elevado do termo. Ocorre que o Estado em suas distintas esferas não se mostrou inicialmente à altura da situação, sem medidas preventivas ao longo de décadas, sem iniciativas poderosas e imediatas, correndo, assim, atrás do prejuízo. O que despontou foram o trabalho e a ação moral da sociedade, das pessoas e empresas privadas, que responderam prontamente.

A sociedade foi rápida em sua atuação, em seu caráter privado, empresarial e civil. Centros de recebimento de doações dos mais diferentes tipos, como colchões, remédios, roupas e mantimentos, ficaram abarrotados, e outros foram logo criados para atender a uma oferta surpreendente. A solidariedade chegou a extrapolar limites físicos. As pessoas estão continuamente recebendo demandas de doações e se mostram moralmente ativas. Diria mesmo que os sentimentos morais saíram de uma moralidade adormecida para uma exuberante. Uma situação limite de calamidade fez surgir o que há de mais nobre na natureza humana.

Os gaúchos são um povo empreendedor. São capazes de vencer as dificuldades presentes, não necessitando de esmolas, mas de recursos para investimentos. Incremento do Bolsa Família serve somente para o momento de emergência, de apoio imediato para garantir um nível mínimo de sobrevivência aos carentes. O fundamental consiste em oferecer às pessoas e às empresas recursos para investirem e darem livre curso à sua capacidade empreendedora, sem burocracias desnecessárias, que só atravancam o processo de recuperação do Estado. Eventuais desvios seriam amplamente compensados por seus resultados. Aliás, a corrupção é particularmente forte em situações normais com todos os controles administrativos.

Cabe, portanto, ao Estado, além de responder à difícil circunstância e equacionar a sobrevivência das pessoas na condição presente, voltar-se para o futuro, o planejamento, a reparação dos erros cometidos e a elaboração de respostas antecipadas a calamidades climáticas que, certamente, irão se repetir. Todo um sistema de contenção de enchentes deverá ser pensado e executado. O Banrisul, por sua capilaridade, por seu conhecimento do Estado e por sua rede de clientes, pessoas físicas e jurídicas, deverá ter um papel central nesse processo de soerguimento. Mais precisamente, deverá o Estado dar livre curso à energia demonstrada, abrir espaço à iniciativa privada, não podendo sufocar o empreendedorismo gaúcho.

Deverá o Estado favorecer a sociedade civil, agir conformemente a ela, aprendendo com ela. O Rio Grande do Sul tem condições de se reerguer, sempre e quando a iniciativa privada e a ação empresarial forem postas em primeiro plano, dando plena vazão aos sentimentos morais.

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PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

Opinião por Denis Lerrer Rosenfield

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