Tem sido frequente o uso da noção de democracia para fins bem pouco democráticos. Trata-se de manipulação perigosa, que distorce noções fundamentais do Estado Democrático de Direito. A democracia não é uma ideia vaga, disponível para a utilização nas mais diversas finalidades, como cada um bem entender. O regime democrático tem uma configuração concreta, estabelecida na Constituição e na legislação vigente, que vai muito além dos desejos e interesses particulares de quem quer que seja. Defender a democracia é respeitar, acima das idiossincrasias pessoais e políticas, esse conjunto de normas e instituições que integram o regime democrático.
Recentemente, por exemplo, o presidente da Câmara acusou de antidemocráticas as comissões mistas para análise das medidas provisórias (MPs). Previstas na Constituição, elas asseguram o trabalho conjunto da Câmara e do Senado sobre esses atos do Executivo. São perfeitamente democráticas. Foram o modo concreto que o legislador constituinte estabeleceu para que as MPs sejam apreciadas, sem nenhuma distinção de precedência, pelas duas Casas legislativas.
No entanto, ao determinar que as emendas às MPs devem ser apresentadas na comissão mista, esse rito constitucional contraria os interesses do presidente da Câmara, que resiste à sua implementação. A história é escandalosa. Além de desobedecer à Constituição, Arthur Lira utiliza sua discordância pessoal como motivo para chamar tais comissões de antidemocráticas. Há um problema grave quando o presidente da Câmara recorre a esse tipo de confusão.
Mas Arthur Lira não está sozinho. O PT também costuma fazer uso distorcido do conceito de democracia. Quando a legenda não concorda com a solução aprovada democraticamente pelo Congresso, é comum que a desqualifique, tachando-a de antidemocrática. Esse uso manipulador do termo foi visto recentemente nas discussões sobre a independência do Banco Central, o novo marco do saneamento básico e a reforma trabalhista de 2017.
O regime democrático tem como parte essencial a existência de diversas opções legítimas. O papel dos representantes eleitos pelo voto da população é justamente decidir qual solução política escolher. Se houvesse somente um único caminho democrático entre as propostas possíveis, a rigor não haveria necessidade de Congresso. Por isso, é preciso advertir com veemência: não há nada de democrático em manifestar oposição à opção vencedora chamando-a de antidemocrática, simplesmente porque a votação contrariou seus interesses.
Esse erro foi muito visto no governo passado. Tome-se, como exemplo, o modo como o bolsonarismo lidou com a derrota no Congresso da PEC do Voto Impresso. Em vez de aceitarem o resultado do voto dos parlamentares, que rejeitaram a proposta, Jair Bolsonaro e seus seguidores tomaram caminho inverso, numa defesa cada vez mais explícita de que democracia seria exclusivamente a implementação de suas ideias. Se não fosse feito da forma como eles queriam, o sistema não seria democrático.
Mostrando que nada tem de inofensiva, tal atitude desembocou diretamente nas manifestações bolsonaristas em frente aos quartéis depois das eleições e nos atos do 8 de Janeiro. As mensagens e publicações dessa turma eram explícitas: democracia seria apenas a realização do que eles pensam e desejam.
Democracia é coisa séria. É pretensioso e perigoso usar a noção de democracia como forma de dar respaldo às ideias políticas próprias. Uma abordagem assim estaria mais próxima do autoritarismo – da imposição de determinada concepção política – do que do regime democrático. Não existe uma única solução democrática. A solução democrática será aquela escolhida pelos representantes da população, por meio das vias institucionais.
Para que se fortaleça, a democracia precisa estar alicerçada não em ideias fluidas, mas no respeito aos caminhos institucionais. Nesses tempos confusos, um pouco mais de respeito à República – efetivo respeito à lei, em todos os âmbitos – é o meio de defesa e proteção da democracia mais seguro e eficaz.