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Dom Odilo Scherer, arcebispo metropolitano de São Paulo, escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Estado e Igreja no Brasil

Após 15 anos de sua ratificação, Acordo entre Brasil e Santa Sé ainda precisa ser mais conhecido no domínio público e nas instituições representativas do Estado e da Igreja

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No próximo dia 7 de outubro transcorrerá o 15.º aniversário da aprovação, pelo Congresso Nacional, do Acordo entre o Brasil e a Santa Sé sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. O acordo foi assinado pelo presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e promulgado, após aprovado o Decreto Legislativo n.º 698, de 2009, no dia 11 de fevereiro de 2010. Portanto, ele possui força de lei em todo o território nacional. O acordo é um reconhecimento público da natureza jurídica da instituição chamada Igreja Católica Apostólica Romana pelo Estado brasileiro. Ele está em total sintonia com a Constituição brasileira.

Longamente discutido e elaborado entre as partes, o acordo tem a natureza de um tratado internacional entre dois entes soberanos com personalidade jurídica de Direito Internacional Público, no caso, o Brasil e a Santa Sé, representando a Igreja Católica. Da parte desta, o acordo representa o reconhecimento do Estado brasileiro e de suas legítimas instituições e representações; da parte do Estado, ele representa o reconhecimento jurídico da instituição Igreja Católica Apostólica Romana e de suas legítimas representações no Brasil. Também estabelece as formas da contribuição da Igreja Católica nos diversos campos da vida cultural, educacional e assistencial, bem como as modalidades de colaboração entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro.

Esse reconhecimento jurídico da condição institucional da Igreja Católica havia deixado de existir no Brasil desde a proclamação da República, que extinguiu o Tratado do Padroado, regulador das relações entre Estado e Igreja durante o período imperial e também, anteriormente, durante o período colonial. A partir de então, embora a Igreja Católica não tenha sido proscrita nem deixado de existir e de dar sua contribuição ao País, a sua situação perante o Estado estava sem amparo jurídico e insegura. Há mais de meio século vinham sendo feitas tentativas para elaborar e validar algum instrumento jurídico que resolvesse essa situação. Finalmente, o acordo foi celebrado e ratificado em 2009.

Da parte da Santa Sé, há uma praxe secular e bem consolidada de celebrar tratados com os Estados onde a Igreja Católica se encontra e atua. Atualmente, há muitos desses tratados em vigor, mais ou menos abrangentes, com os mais diversos países, mesmo onde os católicos são apenas uma pequena minoria. Não se trata da pretensão de ser religião oficial em algum país; a isso, por princípio, ela já renunciou em todos os países. O objetivo da celebração de tratados é deixar claro perante o Estado e a sociedade quem ela é, quem a representa, qual é sua organização e quais são suas normas internas; quais são suas atuações públicas e suas possíveis colaborações para com o Estado e a comunidade local. Ao mesmo tempo, fica claro nos tratados que a Igreja Católica reconhece as instituições representativas do Estado e seu legítimo ordenamento jurídico. Da parte do Estado, ela espera ter o reconhecimento da liberdade religiosa e de atuação religiosa e nos diversos campos da vida social, como a educação, a cultura, a assistência social e a colaboração com o Estado, nos termos da legislação local.

Nos seus 20 artigos, além do reconhecimento jurídico da Igreja Católica e das instituições que a representam, o acordo trata dos objetivos da existência e atuação da Igreja no Brasil; da cooperação entre as partes no que se refere ao patrimônio histórico e cultural; da proteção dos lugares de culto e dos objetos e símbolos religiosos católicos; da assistência religiosa e espiritual às Forças Armadas, aos hospitais e prisões; da ação missionária; do reconhecimento dos títulos acadêmicos obtidos em instituições ligadas à Santa Sé, fora do Brasil; da cooperação na educação; do ensino religioso; do casamento religioso com efeito civil; das instituições beneficentes da Igreja Católica; além de outros assuntos.

Três lustros depois de sua ratificação, o Acordo entre o Brasil e a Santa Sé ainda precisa ser mais conhecido no domínio público e nas instituições representativas do Estado e da própria Igreja. Ainda pairam no ar certos questionamentos sobre a legitimidade desse instrumento jurídico de Direito Internacional. Para alguns, o acordo seria como um “pecado capital” contra a laicidade do Estado e a demonstração de que a Igreja Católica busca privilégios perante o Estado. Os três lustros que se passaram desde a assinatura do acordo já oferecem motivos para afastar esses eventuais temores.

A Igreja Católica não busca privilégios e nem de longe sonha em se tornar novamente a religião oficial do País. Ela reconhece e respeita o sadio princípio da laicidade mediante o qual o Estado reconhece e protege a liberdade religiosa e a livre manifestação religiosa dos cidadãos. Com o acordo, a Igreja Católica se apresenta perante o Estado e a sociedade e coloca as cartas na mesa, deixando claro quem ela é, quem a representa, o que ela faz, como se organiza e como interage com a sociedade brasileira. Tudo no respeito da lei que governa a todos.

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CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Opinião por Dom Odilo P. Scherer

Cardeal-arcebispo de São Paulo

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