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Entre a lei e o dever humanitário

Remoção de barracas em SP respeita a ordem, mas não pode ignorar a tragédia da população de rua

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Por Notas & Informações
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A tragédia social da população de rua está à vista de qualquer um que se disponha a circular pela capital paulista com olhos e coração abertos às dores alheias. Espalhadas por toda a cidade, embora concentradas, principalmente, na região da Sé, famílias inteiras, muitas com crianças de colo, vivem ao abrigo das intempéries e da violência em barracas de camping que representam a única coisa que podem chamar de lar.

Se para qualquer paulistano é impossível ficar indiferente ao padecimento dos 32 mil de nossos concidadãos que vivem nas ruas, a maioria contra a vontade, ao Poder Executivo municipal cabe muito mais que inconformismo. É imperativa a ação da Prefeitura para assegurar que essas pessoas tenham condições de vida minimamente dignas, ao mesmo tempo que deve zelar pela ordem na ocupação do espaço público.

Foi nessa delicada posição, equilibrando-se entre a imposição legal e o dever humanitário, que o prefeito Ricardo Nunes (MDB) ordenou a desmontagem das barracas de camping na região da Sé durante o dia. “A gente precisa ter uma ordenação na cidade, uma organização”, disse Nunes ao Estadão. “Nunca pôde ter barraca”, afirmou o prefeito, referindo-se à legislação municipal. “Houve uma exceção durante a pandemia. A Prefeitura está dando as condições para as pessoas se deslocarem para os locais de acolhida com dignidade.”

A bem da verdade, o movimento de transferência das pessoas das ruas para os abrigos da Prefeitura é um tanto mais complexo do que sugere a fala do prefeito. Na sua própria decisão – correta – de permitir a remontagem das barracas para o pernoite, está implícita a dificuldade de acolher todos. Não há vagas suficientes. “Essas pessoas (fora dos abrigos) estão perambulando e mudando de local. Elas não têm para onde ir”, disse o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo.

Este jornal espera que a desmontagem das barracas – seja na região da Sé ou em qualquer outra – não seja, por óbvio, uma ação descolada de políticas públicas voltadas ao atendimento das necessidades mais prementes dos desvalidos. A Prefeitura precisa garantir que os seus centros de acolhida estejam, de fato, preparados para acomodar todos os que precisam da ajuda estatal nos seus momentos de aflição.

Os agentes da Prefeitura devem, ainda, cumprir as suas atribuições com todo cuidado e respeito às pessoas em situação de rua, principalmente o respeito ao seu direito de propriedade sobre seus bens pessoais. A Prefeitura nega recolher os pertences pessoais nas operações de remoção de barracas, mas há relatos de que esse direito, assegurado pela Constituição, é reiteradamente violado.

O prefeito não tem a responsabilidade direta de solucionar os problemas de fundo que, nos últimos dois anos, fizeram a população de rua crescer 31% em São Paulo. Mas Ricardo Nunes tem de cuidar da zeladoria sem descuidar dos milhares de munícipes que perambulam pela capital paulista contando apenas com o Estado, com a caridade alheia ou com a sorte para comer e dormir em segurança.