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Escombros de um muro infame

A 'Revolução Pacífica' encerrou um dos símbolos mais poderosos da guerra fria

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Por Notas & Informações
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Há exatos 30 anos um funcionário de baixo escalão do Politburo soviético reproduzia, numa coletiva de imprensa na Berlim oriental, um memorando prevendo a liberação de viagens à Alemanha Ocidental. Perguntado quando a medida entraria em vigor, respondeu: “Pelo que sei, imediatamente”. Na mesma noite, massas de berlinenses se comprimiram contra o muro que dividia não só sua cidade, mas sua nação, seu continente e todo o planeta. Naquela madrugada, o muro infame, erguido numa madrugada de agosto de 1961, desmoronou aos olhos do mundo. A “Revolução Pacífica” punha fim a um dos símbolos mais poderosos da guerra fria.

A cortina de ferro começara a ser rasgada meses antes, na fronteira da Áustria e da Hungria. Em 1987, Ronald Reagan, em visita a Berlim ocidental, exortou Mikhail Gorbachev a abater o muro. Em 1978, o papa João Paulo 2.º conclamava seus conterrâneos na Polônia: “Não tenham medo!”. De lá saiu o primeiro sindicato livre em um regime comunista, o Solidariedade, que conduziu o país às eleições livres em 1989.

Quando Gorbachev assumiu como secretário-geral do Partido Comunista soviético, em 1985, a União Soviética era a segunda potência mundial, no comando do bloco vermelho, que contava com dezenas de Estados e mais de 80 partidos comunistas espalhados pelo globo. Mas, por dentro, o império se desintegrava. A crise do sistema de produção marxista-leninista precipitara a população numa penúria permanente. Bastou uma gota de transparência (glasnost) no estado totalitário e outra de reorganização (perestroika) numa economia ultracentralizada para o império soviético desmoronar como um castelo de cartas. Uma a uma foram caindo, em efeito dominó, as “repúblicas socialistas”. 

O império se foi sem derramamento de sangue. A carnificina promovida pelos pró-soviéticos na Romênia foi uma exceção. A regra foram transições como a “Revolução de Veludo” conduzida por Václav Havel na Checoslováquia.

Nos últimos 30 anos o padrão de vida no Leste Europeu melhorou sensivelmente. Segundo um levantamento do Pew Research Center, a maior parte da população em todos os países que se livraram do comunismo - com exceção da Bulgária - concorda que este é o caso. A maioria também aprova o sistema multipartidário e a economia de mercado, assim como a sua integração às instituições ocidentais, como a Otan, desde 1999, e a União Europeia, desde 2004.

Mas há sinais de desgaste e mal-estar. Em países como Eslováquia, Hungria e Bulgária, quase três quartos da população acreditam que seus representantes eleitos não se preocupam com a sua opinião. O mesmo sentimento que tem provocado retrações nacionalistas, protecionistas e populistas na Inglaterra do Brexit, na Itália de Salvini ou na França de Marine Le Pen se traduz, nas democracias mais vulneráveis do Leste Europeu, numa ofensiva aberta contra as instituições liberais. Na Polônia e na Hungria, a debilitação das cortes e da imprensa e a rejeição aos direitos humanos, à tolerância e ao consenso se tornaram rotina.

Na própria Alemanha, a locomotiva da Europa, pela primeira vez desde a 2.ª Guerra Mundial, um partido de extrema direita, o Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla alemã), retornou ao Parlamento, sobretudo com votos do leste, reclamando para si a missão de combater o comunismo até o seu fim. Hoje, como reportou a revista The Economist, 47% dos alemães-orientais se identificam, primeiro, como sendo do leste e, depois, da Alemanha, uma proporção mais alta do que na época da reunificação.

Nesses países se avolumam desafios característicos das democracias liberais - como os novos meios de concentração de renda e poder criados pela tecnologia, a disfuncionalidade dos mecanismos de tributação e de seguridade social, as violações ao direito das pessoas de se mudarem de um país para outro -, mas não há saída senão enfrentá-los. Do contrário, novos muros serão erguidos sobre os escombros daquele muro maldito.