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Opinião | 30 anos depois, um pacto contra a fome

Só o desmonte das políticas públicas dos últimos anos pode gerar tamanho retrocesso. Com covid-19, criou-se tempestade perfeita.

Por Daniel Souza

O primeiro registro oficial sobre a fome, numa dimensão análoga ao genocídio, ocorreu entre os anos de 1877 e 1879, quando 600 mil pessoas morreram de inanição no semiárido brasileiro. Quase 150 anos depois, vivenciamos um novo crime humanitário neste país, revelado pela mais recente pesquisa da Rede Penssan, mostrando que hoje 33 milhões de pessoas passam fome.

O choque e a vergonha provocados por este número se somam à velocidade com que a miséria aumentou em apenas um ano: mais 14 milhões de pessoas passaram a não ter o que comer. Se nada for feito imediatamente, teremos entre 40 milhões e 50 milhões em 2023.

O que pode ser mais imoral do que estes números? 

Lembro quando, em 1993, o Ipea divulgou que 32 milhões de pessoas passavam fome. A reação da sociedade foi uma explosão imediata de solidariedade, mobilizando a cultura, empresas, a mídia e, principalmente, cada um de nós a não esperar uma ação governamental, mas fazermos a nossa parte. Em pouco tempo, milhares de comitês foram criados pelo Brasil, incluindo alguns fora do País; shows dos principais artistas adotaram o quilo de alimento como ingresso; agências de publicidade fizeram campanhas pro bono; times de futebol jogaram partidas para arrecadar comida; empresas doaram toneladas de alimentos e a mídia colocou todos os veículos a disposição para a campanha, numa época em que as redes sociais não existiam. Dessa imensa onda nasceu a Ação da Cidadania, uma reação da sociedade contra a miséria, a fome e pela vida.

Quase 30 anos depois, o que pode justificar que tenhamos atingido a marca nefasta de 33 milhões de famintos? Quando saímos do Mapa da Fome da ONU, em 2014, sendo um exemplo para o mundo, quem poderia imaginar que apenas oito anos depois teríamos 125 milhões de pessoas com algum grau de insegurança alimentar?

Só o desmonte sistemático e deliberado das políticas públicas dos últimos anos pode produzir tamanho estrago e retrocesso, que junto com a pandemia criaram uma tempestade perfeita. Os raios dessa tempestade, como sempre, caem sobre a população mais vulnerável, que não tem nenhuma rede de proteção ou apoio. Analistas e economistas podem explicar as razões e as consequências, mas o que nos cabe enquanto sociedade é não perder a capacidade de indignação quando 15% da população deste país não tem o que comer.

Não é preciso ser pai ou mãe para imaginar o que devem sentir quando têm de dizer aos próprios filhos que esta dor na barriga é fome e que não há comida. São crianças e não querem saber o que é inflação, desemprego, muito menos aquelas mudanças estruturais que nunca vieram. Elas só querem comer. Quando perguntaram a uma mãe o que ela faz nessas horas, disse que chora junto com as crianças.

O direito à alimentação está garantido pela Constituição Cidadã de 1988, não como favor ou caridade, mas como um dever do Estado. Solicitamos à OAB Nacional que entrasse com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para obrigar o governo a simplesmente cumprir o que está na nossa Carta Magna. É o povo processando um governo que deixa o povo passar fome.

Em outra frente, reunimos as 30 entidades e instituições mais representativas do País no Encontro Nacional Contra a Fome, para discutir as causas, consequências e soluções para a insegurança alimentar. Desse encontro saíram dez propostas concretas para os candidatos à Presidência da República, que foram entregues a cada um, em mãos. E, como ocorre em toda eleição, produzimos e lançamos a Agenda Betinho 2022, com 92 propostas de políticas públicas para o combate à fome, que podem ser implementadas ainda este ano, bastando apenas a vontade política.

Mas no plano emergencial é fundamental enfrentar esta calamidade pública hoje, não amanhã ou depois das eleições, porque senão, para estas milhões de famílias, somos totalmente inúteis.

Por isso lançamos no dia 15 de julho o Pacto Pelos 15, uma mobilização nacional que vai, assim como em 1993, convocar o País para ajudar os 15% da população brasileira que neste exato momento não tem o que comer. São inúmeras formas de participar, seja com recursos, tempo, diversas ações e, principalmente, criatividade e solidariedade.

Se você não tem R$ 15, pode ter R$ 0,15. Se você não quer doar recursos, pode doar seu tempo, sejam 15 minutos ou mesmo 15 segundos. Não importa como ou onde, importa a sua ação movida pela sua consciência.

O pacto é a resposta da cidadania, porque, assim como uma criança com fome, ela não quer saber das causas e dos obstáculos. Ela é um valor universal, imprescindível e necessária como o ar que respiramos.

O primeiro passo foi dado pelo espelho que a pesquisa da Rede Penssan colocou na nossa frente. O segundo passo é responder de forma honesta a uma pergunta pessoal: o que eu, artista, empresário, jornalista, atleta, influencer, estudante, ou seja, cidadão brasileiro, tenho que ver com isso? Sua resposta vai definir, exatamente como há 30 anos, o rumo que este país vai tomar no enfrentamento da fome.

O último e mais importante passo é agir. O Pacto Pelos 15 é a nossa proposta para você. A solidariedade tem esta vantagem: basta você querer e uma gota vira uma onda.

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FILHO DO SOCIÓLOGO E ATIVISTA DOS DIREITOS HUMANOS BETINHO, É PRESIDENTE DO CONSELHO DA AÇÃO DA CIDADANIA

Opinião por Daniel Souza
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