Opinião | A bem-vinda ‘class action’ brasileira

Entende-se prioritário garantir que as disputas socioambientais sejam definidas no País, afiançando que os conflitos sejam debatidos em terreno conhecido

Por Eduardo Boulos, Rafael Feldmann e Marcelo Schwartzmann

As disputas atinentes a danos ambientais e temas de impacto social no Brasil vêm experimentando um novo paradigma. Enquanto ontem, os casos eram objeto de questionamento primordialmente por entes públicos, dentro de suas respectivas competências e respeitando os limites territoriais; hoje, casos de grande repercussão estão sendo levados por particulares a cortes estrangeiras.

Com relação a eventos ocorridos no Brasil, temos o exemplo do desastre da barragem de Fundão em Mariana/MG, que resultou, em contestação à resposta local, na ação judicial movida na Justiça da Inglaterra diante da BHP Billiton, acionista da Samarco, envolvendo mais de 700 mil pessoas, incluindo dezenas de municípios, povos indígenas e comunidades tradicionais, instituições religiosas e até empresas, buscando indenizações bilionárias. Nesta tendência, empresas que atuam no Brasil veem-se obrigadas a defender-se em tribunais estrangeiros por eventos ocorridos aqui. Tais tribunais, naturalmente, aplicam a sua própria lei processual; contudo, quanto ao direito material em si, aplicam, em tese, a lei brasileira. Em outras palavras, juízes situados a milhares de quilômetros de distância, cultivando uma outra cultura jurídica, estão assumindo a condição de selar o destino das vítimas e daqueles supostamente responsáveis por violações de direitos.

A justificativa principal dessa tendência de se retirar da Justiça brasileira a competência de dirimir suas próprias questões é a sua alegada incapacidade de promover uma reparação justa, célere, efetiva, completa, imparcial e rigorosa. Muitas vezes, vale-se da presença de empresa do mesmo grupo empresarial na jurisdição estrangeira. Assim, o que se busca é a substituição da competência brasileira por uma estrangeira, dentro de uma lógica que desprestigia a nossa Justiça e soberania.

Não há dúvida de que o melhor juízo para dirimir questões atinentes à responsabilidade civil é aquele situado onde ocorreu o suposto evento danoso. O juízo do local do dano possui maior proximidade com as provas e fatos, além de maior conhecimento do local; o acesso à justiça e a real participação das vítimas são privilegiados, atenuando assim as assimetrias processuais com empresas de grande poder econômico; a prestação de contas é facilitada; a sensação de legitimidade do julgamento é maior e as comunidades sentem-se mais empoderadas.

Não é sem razão que assim definem, na esfera do ordenamento jurídico pátrio, o Código de Processo Civil (artigo 53, IV), a Lei da Ação Civil Pública (artigo 2.º) e o Código de Processo Penal (artigo 70), e no âmbito do Direito Internacional, a Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Estrangeiras em Matéria Civil e Comercial, de 1971 (artigo 10, item 4, embora não ratificada pelo Brasil) e o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 (artigo 7.º, item 2).

Sem desprestigiar a indispensável atuação dos entes públicos já designados e conhecidos na temática coletiva, tal como o Ministério Público, é muito bem-vinda a criação de uma ferramenta adicional para que os atingidos por eventos danosos também sejam empoderados a escrever suas próprias histórias. Essa ferramenta seria complementar, portanto, às ações já existentes.

A despeito do caráter vanguardista da proposta, já existem discussões legislativas sobre temas similares. Está em tramitação no Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL n.º 2.925/23) que busca conferir transparência em processos arbitrais e dispõe sobre o sistema de tutela privada de direitos de investidores do mercado de valores mobiliários. Já a proposta deste artigo não é tratar de mercado de capitais ou da Lei das S/As, o que se propõe é a criação de uma nova espécie de ação coletiva que admita a legitimidade ativa de pessoas naturais e jurídicas que entendam que tiveram seus direitos violados.

Uma mudança como essa permitiria a atuação do financiamento de litígios – e, sobretudo, na temática ESG (ambiental, social e governança, na sigla em inglês) – alocando recursos aos autores de ações coletivas movidas por particulares (ou class actions, como nos EUA), ampliando a capacidade de produção de provas de alta precisão e em tempo mais adequado, por exemplo. Tais ações poderiam tratar sobre as temáticas coletivas mais diversas, incluindo a litigância climática, que, ganharia uma tração considerável.

Essa nova espécie de ação poderia ser acompanhada da previsão de varas especializadas compostas por juízes experientes em litígios coletivos, prazo próprio para proferimento de sentenças e outros incentivos à celeridade, desde que respeitadas as regras do sistema atual e o devido processo legal.

Ademais, poderíamos adotar o sistema opt-out (característica fundamental das class actions norte-americanas), por meio do qual todos os indivíduos pertencentes a um determinado grupo de pessoas com interesses ou danos comuns são automaticamente incluídos na ação coletiva, a menos que explicitamente optem por sair do processo. A adesão automática facilitaria o acesso à justiça, reduziria a multiplicidade de ações, economizando tempo e recursos do sistema judiciário e aumentando o poder de barganha das vítimas, incentivando acordos e reparações mais amplos. Esta alteração no regime processual permitiria ao juiz proferir sentenças menos genéricas, com maior liquidez e facilitando o seu cumprimento com um grau menor de questionamento na fase executória.

Ao contrário do que pode parecer, robustecer o sistema de reparação de demandas coletivas traria mais segurança jurídica a todos os atores envolvidos, incluindo aqueles que, pela natureza das suas atividades, impactam o meio ambiente e as comunidades locais. Afinal, a garantia do acesso direto aos tribunais brasileiros por parte das vítimas fulminaria o principal argumento das ações movidas no estrangeiro, bem como reforçaria a credibilidade do Poder Judiciário brasileiro.

Entende-se prioritário garantir que as disputas socioambientais sejam definidas no Brasil, afiançando que os conflitos sejam debatidos em terreno conhecido, evitando-se decisões conflitantes, dentro de um sistema judicial em que se privilegia a uniformização da jurisprudência e no qual os seus representantes – juízes – aplicarão a lei que foi objeto de estudo durante toda sua vida acadêmica e profissional.

Opinião por Eduardo Boulos

Advogado

Rafael Feldmann

Advogado

Marcelo Schwartzmann

Advogado ambiental