O mensalão constituiu comprovadamente a forma espúria pela qual o PT, partido de 50 deputados, sem partilhar o poder com os demais partidos, veio a formar uma maioria parlamentar.
A concentração de poder nas mãos do partido era sagrada. Podia-se contemplar outro partido com cargo de ministro, mas não com ministério, cujo controle a partir do secretário executivo era detido por apaniguados do PT. O aparelhamento do Estado foi absoluto. A administração, direta e indireta, agências reguladoras, fundos de pensão foram entregues a sequazes do PT.
Com essa forma de governar se descontentavam os demais partidos e seus parlamentares, que passaram a ser cooptados por meio de envelopes com dinheiro entregues em hotéis de Brasília. José Dirceu, chefe desse esquema de propina, que destrói a democracia por dentro, tesoureiros do PT e líderes do PP e do PTB arquitetaram inteligente manobra financeira para alimentar a compra de deputados.
Denunciada a trama urdida com Marcos Valério & Cia., passou-se a recorrer a outra fonte pagadora: os sobrepreços em contratos da Petrobrás, visando exatamente ao mesmo fim: a governabilidade num presidencialismo de coalizão, desvirtuado, pela sede de poder, em presidencialismo de corrupção. Instalou-se nova ditadura da propina, envolvendo gravemente dois ministros da Fazenda, pessoas de alta confiança de Lula.
Diretores da Petrobrás foram indicados por partidos políticos para angariar fundos em contratos superfaturados. Empreiteiras amigas, partidos e alguns próceres políticos foram aquinhoados com fortunas. E assim se satisfazia a “base parlamentar”. A nomeação desses diretores sempre contou com a anuência de Lula e de Dilma, esta seja no Conselho de Administração, seja, depois na presidência, como atestou em delação Nestor Cerveró.
Consolidava-se a paz suja na democracia petista, com os ânimos serenados dos parlamentares de diversos partidos graças à divisão do butim. O PT era, sem dúvida, o mais beneficiado, com formação de um caixa fabuloso visando à perpetuação no poder.
Esse o pano de fundo que os procuradores da República desejaram desenhar, com exagero na forma, mas não no conteúdo. Desvelou-se um procedimento criminoso que nasceu para garantir a governabilidade, passou a visar à continuidade no poder, e – por que não? – ao proveito pessoal.
Mas o fator desencadeador e principal do mensalão e, logo em seguida, do petrolão foi a busca de governabilidade sem partilha de poder, sendo o PT minoria no Congresso Nacional.
À denúncia e à explanação dos procuradores Lula respondeu no dia seguinte em reunião do PT, na qual pretendeu acusar os seus acusadores. Sempre verborrágico e dramatizador, Lula não se ateve ao fulcro do fato delituoso que lhe é imputado, qual seja, a propriedade dissimulada do triplex com cozinha gourmet e elevador privativo patrocinado pela OAS, após visita ao apartamento em companhia do presidente da empreiteira.
No meio de choros e lamentos como perseguido por ser protetor dos pobres, declarou-se vítima de algozes tal como foram Jesus e Tiradentes. Lembrou-se de sua infância miserável e, ao defender sua família, chorou.
Todavia, no meio dessa algaravia de lamentações mal encenadas, havia um núcleo racional, no qual se tem a impressão de que Lula falava consigo mesmo, como para justificar por que os fatos assim se deram e não poderia ter sido diferente. Subliminarmente, ao atacar os concursados como analfabetos políticos, Lula confessou a prática dos malfeitos como forma inevitável da real política, ignorada pelos frequentadores de gabinetes.
Cabe relembrar as frases de Lula, extremamente reveladoras. Disse ele: “Eu, de vez em quando, falo que as pessoas achincalham muito a política. Mas a profissão mais honesta é a do político. Sabe por quê? Porque todo ano, por mais ladrão que ele seja, ele tem que ir para a rua encarar o povo, e pedir voto. O concursado, não. Se forma na universidade, faz um concurso e está com emprego garantido o resto da vida. O político, não. Ele é chamado de ladrão, é chamado de filho da mãe, é chamado de filho do pai, é chamado de tudo, mas ele tá lá, encarando, pedindo outra vez o seu emprego”.
“Ontem eu vi eles falarem dos partidos políticos, dos governos de coalizão, vocês sabem que muita gente que tem diploma universitário, que fez concurso, é analfabeto político. O cara não entende do mundo da política. Não tem noção do que é um governo de coalizão. Ele não tem noção do que é um partido ser eleito com 50 deputados de 513 e que tem que montar maioria.”
Lula tentou explicar ou se explicar falando do mundo da política, onde um partido com 50 deputados numa Câmara de 513 deve buscar ter maioria. Deixou subentendido que só os analfabetos políticos, ingênuos, não percebem que a cooptação a todo custo de deputados era uma via obrigatória, pois só assim se obteria a governabilidade.
E o político, nesse mundo de realidade nada ética, em busca da coalizão, pode ser ladrão que sempre será o profissional mais honesto, pois anualmente (sic) “tem que ir para a rua encarar o povo e pedir voto”. Assim, a caça ao voto purga os males, pois encarar o povo santifica e faz do político o mais honesto, por mais ladrão que tenha sido, enquanto o empertigado concursado descansa no seu mérito sem depender da aprovação popular a cada pouco.
São na visão de Lula dois mundos inconciliáveis: o da política, próprio da esperteza de a cada eleição ir ao povo buscar votos, numa catarse purificadora; e o mundo do esforço contínuo daqueles que pretendem vencer pelo merecimento.
Lula não é um analfabeto político; é, segundo o seu critério, um homem honesto, por mais acusado que seja de corrupção. Lula, que confessou sua “honestidade”, tem um futuro desolador pela frente.
*MIGUEL REALE JÚNIOR É ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SENIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA